Fora uma sincera alegação que o banira. Na verdade – dissera – nada tinha contra esses vietcongs e nada iria, seguramente, disputar com eles a Hanói. Pelo menos, a ele, nunca o haviam chamado de preto!
O mundo subitamente obscureceu...
Não mais saudaríamos aquela abnegação do corpo, movendo-se por entre a flagelação do combate. Não mais a inteligência firme nos movimentos, preparando a violência do golpe. Não mais a astúcia da espera, aguentando-se por filamentos de discernimento – e quão trémulo às vezes ele se tornava! – ante a direita impiedosa e fulminante do adversário. Não mais o silêncio posto no resistir e o desespero extenuado de um último assalto.
Por todo esse interminável tempo, não mais exultaríamos na suprema glória de quem vencia, quando antes tudo não fora mais que sangue e desfiguramento da carne.
Durante esses pequenos longos anos, muitos vieram com indubitável talento e maestria, esgrimindo graciosidade e ligeireza bastantes, para que no fim alguns soçobrassem, enquanto todos os demais, estatelados ou recuperando a razão fugitiva, conhecessem no amargo da derrota, uma instantânea punição de lucidez, vergando-os na descoberta da própria banalidade.
Por todo este tempo ninguém viera supremo, inquestionável na arte.
E por muitos foi dito, que nesses anos de afastamento forçado, houve orfandade e média luz. Nele não houvera ninguém que iluminasse o ringue como Muhammad Ali.
Nesses que assim testemunham, ficara a memória de um estilo pendular e mortífero, balançando seguro, pausado, perante um embrutecimento sofregamente arremessado pelo adversário. Em Ali havia uma ligeireza que se semeava na esquiva e que sibilinamente preparava a derrota.
(Ali intuíra o golpe, afastando o corpo por uma breve e rápida inclinação. Retrocedera nesse contínuo de movimento para a sua esquerda, dois passos, mantendo com a mão direita, a imperturbável guarda. Contudo, sabia já que no terceiro passo, teria firmado o equilíbrio numa habilidade de pernas quase matemática e que a resposta viria da esquerda, que permanecera resguardada, escondendo o contragolpe sobre a inclinação da esquiva. Seria o rim do adversário que aplacaria a violência do que já determinara.
Fulminava-o pois, pleno de brutalidade.
Acossado na dor, o adversário vacilou, estancando-se-lhe por fracções de segundo, movimento e raciocínio, momento de um quase nada mas de indubitável fatalidade, ao qual Ali responderia sem mais misericórdia, desferindo um “uppercut” com a mesma direita que momentos antes o resguardara. O sangue corria já da boca e em breves segundos tudo se daria por terminado.
Era enfim, respirando a tranquilidade de quem prevalecera, que Ali derrubava numa esquerda metálica, aquilo que só reflexamente se esforçava por manter de pé).
Fora essa coerência física, essa perfeição do agir, que fizera Ali supremo, como se lhe fora dado o encanto de bailar numa frente de batalha. Tudo nele acontecia com uma demolidora elegância e a descrição fria e desenhada de um risco.
Não admira pois, que em 71, voltando aos ringues em desafio a “Smoking” Joe Frasier, para o título mundial de pesados, o quadrilátero que voltava uma vez mais a pisar, fosse já sagrado. Na efervescência da multidão, algo pairava acima dos homens. Muhammad Ali cultivara a distância e a soberania de um Deus e todos agora o aclamavam.
Que erguesse os braços ao céu, em sinal de vitória...
sexta-feira, 14 de outubro de 2005
cassius marcellus
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5 comentários:
Tive a oportunidade de ver um programa sobre aquele que foi considerado o melhor combate da história do boxe:
1 de Outubro de 1975
Manila, Filipinas
Muhammad Ali vs Jioe Frazier
Dois homens que se odiavam e que representavam pólos opostos da sociedade de então.
Uma luta de gigantes, que terminou num respeito mútuo que tocou o mundo.
Aconselho todos a procurarem saber mais.
caríssimo asp:
efectivamente esse foi senão o combate da história, foi aquele que em definitivo colocou Ali àparte de todos os demais. O combate a que se reporta o presente texto, foi aquele em que Ali regressa depois de se ter ausentado dos USA por se recusar a ser mobilizado para o Vietname. neste, ele saiu derrotado, e regressa creio que no combate a que o asp se refere em 1975, ganhando-o a Frasie, para depois o perder em 76 contra george foreman. De qualquer forma, sempre um ícone...
caro fritz,
quem escreveu não foi o asp, mas sim o amf.
Para que conste.
caríssimo asp:
ainda a propósito do último post, há algumas correcções que se tornam necessarias. Creio que efectivamente grande maioria dos fãs considera o combate de Manila como "o combate". Não sei de qualquer documentário a propósito deste, mas existe um outro que se tornou num clássico do cinema documental e que relata a preparação do combate Sonny Liston/Cassius Clay, em que este chega a receber a visita dos beatles.
Mas relativamente ao post, convém referir que efectivamente, e apesar de durante cerca de 5 anos ter sido impedido de combater - a sua recusa de incorporação no exército dos USA valeu-lhe a revogação da licença de combate - Ali nunca saiu dos Estados Unidos, antes iniciou uma batalha legal, que implicou o refúgio em quase todos os Estados de que se compõe a sua nação. O último combate fê-lo em 1967 contra Earnie Terrell que referindo-se ao já convertido Ali como "Mr. Clay" nas semanas que antecederam o combate, foi por este literalmente malhado e sempre perguntando-lhe "what´s my name?" até que Terrell simplesmente deixou de poder ouvir.
Se o "Thrilla in Manila" é considerado "o combate" convém não esquecer Kinshasa, no qual Ali ganha pela segunda vez o título mundial - uma terceira aconteceria ainda contra Leon Spinks - deixando-se bater contra as cordas por oito assaltos, num calor infernal, para ao nono, delas sair e arrasar com Foreman. Há quem considere que foi a coça que durante oito assaltos levou de Foreman que acabou por precipitar a doença de que hoje Ali sofre.
Caro asp: ficando rectificados alguns dos factos, aconselho-o a, se alguma vez tiver oportunidade de o visionar, a ver o tal documentário Liston/Cassius Clay de cujo combate é aliás a fotografia do post.
Tchüss
Amf, desculpe!
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