as conversas com o biela: a república
Por norma o biela têm sempre imenso que fazer. Por isso, sempre que discutimos assuntos que se desenvolvem a partir de conceitos abstractos e que, quer eu quer ele, pretendemos filosófica ou politicamente bem definidos, há sempre, durante a discussão, uma consciência de um profundo deslocamento espacial à medida que aquela se desenvolve. Invariavelmente, ela é acompanhada na sua progressão, pelo esforço posto pelo biela na substituição de uma junta da colaça, pela verificação e desmontagem de cambotas, pela substituição das velas ou filtros ou ainda, por mais um alinhamento de direcção.
Não deixa aliás de ser curioso, que este mesmo sentido mecânico posto na respectiva profissão, seja muitas vezes perceptível na própria argumentação defendida pelo biela, seja aquando da discussão dos fundamentos para acções a desenvolver no âmbito Clube Beretta, seja em outro tipo de assunto de carácter mais geral ou diletante, como aquele que tivemos oportunidade de discutir, na passada segunda-feira, enquanto se removia de um Ford Capri de 1979, a respectiva caixa de velocidades.
Questionava-se o biela – e por arrasto eu mesmo, ainda que apenas pretendesse deixar o meu veículo para a revisão dos 100 000 Km – sobre existirem modelos políticos que, com as respectivas diferenças, melhor se adaptem e melhor potenciem as características próprias de um povo. Das palavras notava-se sobretudo um enorme desencanto com a república e a irritação quando acontecia, era apenas em razão das óbvias dificuldades em fazer soltar o veio de transmissão, ou a embraiagem. De qualquer maneira, sempre o biela dizia: “Caríssimo X., sendo o modelo político republicano a expressão mais conforme àquele fragmento mais numeroso e desordeiro, perfeitamente acéfalo e sanguinolento da Revolução Francesa e nesse sentido, aquele que mais próximo está de uma ideia e expressão verdadeiramente democrática do indivíduo (o povo, ainda que tresloucado e investindo em manadas, é efectivamente o único ente soberano) e sendo esse fragmento de multidões democráticas, oposto àquele outro, mais burguês e exclusivista, mais próprio e próximo da ponderação e do racionalismo iluminista de inspiração liberal (que não democrático, mas régio por essência), essa importação republicana e francesa das multidões, hoje efectiva em Portugal, reduz-nos a um conjunto de princípios comuns, sem dúvida importantes, mas que, sendo hoje partilhados por todo um outro conjunto de países e de repúblicas, nos tornam indistintos (somos, para todos os efeitos, repúblicas) chegando a sobrepor-se à respectiva história e à respectiva cultura.” Por momentos, o biela parou, pegou numa outra chave de bocas e prosseguiu: “Caro X., hoje, para demasiados, é muito mais importante ser-se cidadão e universalista, do que pertencer-se e reduzir-se a uma pátria e a uma história. Hoje, em nome desse suposto “universalismo” iluminista de inspiração democrática e do modelo político que o glorifica, chega-se a pedir desculpa aos outros pela história que tivemos e pela cultura que trazemos. Mas que raio é isto X.?!! A mim, diz-me muito mais a história e a cultura, do que o raio do princípio da separação de poderes!” O biela terminou assim brusco e desencantado a remoção da caixa das velocidades. O Ford Capri de 1979, apesar da sangria, seria seguramente restituído ao esplendor dos seus anos de glória. E arrastando com o pé toda a ferramenta espalhada para um canto, o biela rematou: “Sabes X., por isso me pergunto se não ficaríamos verdadeiramente bem servidos e conformes com a nossa natureza histórica e cultural, se fosse novamente a monarquia e o rei.. Aí, seguramente tudo seria a nossa história, a nossa cultura e respectivo património, e quebraríamos o poder dessa burocracia branca e internacionalista que hoje, esvazia os Estados!”
Eu por mim, imaginei o rei em Fornos, deixando a propriedade do seu carro aos cuidados do biela. O rei em Fornos, passando a Igreja, chegando à garagem num Ford Capri. O rei em Fornos, espectáculo para trabalhadores, agregando multidões... Haveria adereços nas vénias e aparato na gala? Eu, muito singelamente, perguntaria qual a franca opinião da majestade sobre a miúda pendurada a um canto da garagem, que fazia questão em mostrar-se apetitosa e nos dizia que era já fevereiro, o mês do calendário...
1 comentário:
Caro Fritz,
Como ainda não o disse, aproveito mais um dos seus textos CB 2000, para o felicitar. Acrescento que estes, pelo que sei, já têm muitos fãs, entre os quais me incluo, obviamente.
Um abraço.
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