In Publico.
Abel Mateus, ex-presidente da Autoridade da Concorrência, hoje a dar aulas na Universidade de Nova Iorque, afirma que a "lógica de fazer grandes projectos, porque vai gerar emprego, é uma lógica invertida".
O que pensa das análises que olham para Portugal como um dos países que ameaçam a integridade do euro?
Já há muitos sinais de problemas. O sinal muito claro foi dado pelas agências quando reduziram o rating da República Portuguesa, bem como de outros países do Sul da Europa e da Irlanda. O problema de restrição do financiamento externo é o mais importante e complicado da economia portuguesa, actualmente.
As estatísticas dão, para finais de 2008, 106 por cento de endividamento externo em relação ao PIB, a crescer entre oito a nove pontos percentuais do PIB ao ano. Isto altera radicalmente a situação como se analisa a economia portuguesa, porque já não se pode medir a evolução do bem-estar dos portugueses e do seu rendimento em termos do PIB.
Quando se diz que o PIB cresceu um ou 1,5 por cento, não é isso que cresce o rendimento dos portugueses, porque já temos de pagar muitos juros ao exterior. No período 2005-09, embora o crescimento médio do PIB tenha sido à volta de um por cento, em termos de rendimento nacional esteve estagnado.
O PIB deixou de ser um indicador adequado?
Deixou. Deve ser em função do rendimento, porque temos já uma taxa elevada de endividamento em relação ao exterior e pagamos muito mais juros ao exterior do que recebemos de aplicações.
Falta coragem aos políticos para olhar para esse problema?
Não sei. A Irlanda era um país que tinha crescimentos de 10 por cento ao ano, mas em termos de rendimento nacional era muito menor, porque muito desse crescimento era IDE e saía muito dinheiro por repatriação de lucros, mas eles estavam muito conscientes disso.
Portugal é um Estado falido?
Não. O que este indicador nos diz é que a evolução da economia está assente no endividamento. Se não houvesse esse endividamento não era possível atingir as taxas de investimento que temos atingido e nem era possível os níveis de consumo que temos. Para o futuro, ou se altera substancialmente o modelo ou vamos bater cada vez mais nesta restrição externa. Se está a subir oito por cento ao ano, passados 10 anos são mais 80 por cento em cima dos quase 110 por cento - que é a actual taxa de endividamento sobre o rendimento - que vamos atingir no final deste ano. Se batermos lá com a cabeça, vamos ter problemas sérios.
Somos um caso potencial islandês?
É muito diferente. A Islândia tinha, em 2006, um endividamento externo de 200 por cento do PIB, é um país pequeno, de 300 mil pessoas. Um dos grandes problemas é que esse endividamento foi resultado de uma série de bancos que se endividaram muito a comprar até cadeias de supermercado no estrangeiro e com investimentos de muito baixa rentabilidade. Uma das primeiras medidas da Islândia foi vender grande parte desses activos para reduzir a dívida. Não tem muito a ver com o que se está a passar com Portugal.
Como se mede, em termos concretos, esse risco de que fala?
O excesso de financiamento externo é devido ao facto de os agentes económicos, em particular as empresas e as famílias, estarem a um ritmo de endividamento elevado. E a origem de todas as crises financeiras é o sobreendividamento. É preciso visão suficiente para não chegar à situação em que se vai preencher o cheque mas não há lá dinheiro e não se pode levantar.
Esse é um problema para que, penso, não sou só eu, mas as agências de "rating", ao baixarem o "rating", se deve chamar a atenção.
Há também uma particularidade da economia portuguesa: olha-se para a dívida pública e diz-se que não é muito elevada, mas as empresas públicas financiam-se com crédito bancário e para muitos dos grandes projectos de investimento o Estado puxa as empresas através de project finance para obterem financiamentos bancários.
É dívida desorçamentada.
É preciso analisar o endividamento de toda a economia. Se eu passar a dívida de uns agentes para outros, isso não diminui a dívida.
Para si, o endividamento é o maior factor de preocupação?
A minha principal preocupação é que a economia se desenvolva, que se retome o crescimento em Portugal, e o problema é agravado por este endividamento.
Se crescermos nos próximos 10 anos ao mesmo ritmo que a UE - o que não tem acontecido -, a dois por cento ao ano, com estes níveis de crescimento de endividamento, a cada ano, estamos a comer meio ponto percentual ao PIB. Quer dizer que, daqui a 10 anos, estamos cinco pontos mais pobres do que a Europa e vamos regressar aos níveis com que entrámos para a CEE.
O que tem falhado?
Há um problema muito grave em Portugal nos últimos anos. Não há um documento estratégico, um pensamento estratégico. Há excelentes economistas portugueses, em universidades estrangeiras, que podiam colaborar para um documento desta natureza.
Os grandes projectos públicos de investimento não estimulam a economia?
Quando se constrói uma auto-estrada, um aeroporto, o que se pensa é que o benefício do projecto é todo o emprego e as matérias-primas que se empregam quando se vai construir. Ora, isto é o custo do projecto. Nenhum empresário vai fazer uma fábrica e dizer que o benefício de fazer a fábrica foi construí-la e colocar lá as máquinas.
O benefício do projecto de uma fábrica é o rendimento que essa fábrica depois vai gerar: vai vender e vai ter as suas receitas e os seus lucros. Esse rendimento líquido vai ter de pagar os custos. Esta lógica de fazer grandes projectos porque vai gerar emprego é uma lógica invertida. O que interessa é o rendimento adicional que se vai gerar em Portugal.
Não acredita no rendimento adicional do novo aeroporto?
É uma questão de bom senso. No novo aeroporto, coloco os custos de construção de um lado, do outro vejo se vou gerar rendimentos suficientes, porque há aqui um custo de oportunidade: esses recursos estão colocados no aeroporto, não caem do céu, e com esses recursos podia construir outras coisas, complexos turísticos, fábricas, escritórios etc.
Qual o rendimento gerado pelo novo aeroporto? O existente (Portela) está ainda longe de ter a capacidade totalmente utilizada. Se formos ao aeroporto de Heathrow, Londres, Chicago, há praticamente um avião a baixar de minuto a minuto e o movimento de Lisboa não tem qualquer comparação.
Uma professora do IST, que fez um estudo dos aeroportos europeus, concluiu que o aeroporto português podia aumentar a sua utilização à volta de 30 por cento se fosse eficientemente utilizado. Portanto, em primeiro lugar, temos de utilizar da melhor maneira possível o que temos. E daqui a quantos anos vai duplicar ou triplicar a procura dos serviços aeroportuários? Não sei, mas tenho muitas dúvidas.