quarta-feira, 15 de outubro de 2008

clube beretta 2000 - os diários


Ulrike Baader e a desmancha dos porcos.

Parte I.

Talvez não venha muito a propósito mas, quando Ulrike Baader se enforcou em 1976, na sua pequena cela, da prisão de Stammhein, nem ela própria julgaria possível, que depois das bombas e dos assassínios políticos, seria o seu próprio cérebro aquilo que por todo este tempo seria mantido em formol, pelo Estado Alemão. ULRIKE BAADER – dirá numa etiqueta, sobre o amarelo gasto do troféu – 09 de Maio de 1976. Não sei, se para os fins científicos que fundamentaram a sua preservação (assim pelo menos, reza oficiosamente a história) alguma vez o chegaram a cortar, ou se pelo menos, num tom mais divertido, lhe chegaram uma faca, a ver se ele saltava…
Mas não deixa de ser irónico, que alguém que a certo ponto chegou a acreditar que tinha nas mãos a HISTÓRIA, fazendo por isso parte de um movimento proletário, cujas premissas de actuação terrorista, poderiam ver todos os seus futuros vectores e radiais, previamente estabelecidos e determinados numa base sociológica e científica (cujo mecanicismo infalível – do qual Baader era engrenagem empenhada – não poderia conduzir senão ao funeral do capitalismo, pudesse o protagonista dominar todas as teses marxistas e o respectivo enquadramento histórico) acabasse ela mesma, numa bandeja metalizada, servindo o mesmo propósito humanamente meritório, do método científico: primeiro a caracterização, com todas as suas quantificações e medidas; depois as hipóteses, como base primeira de possíveis explicações; em terceiro as previsões, como decorrentes racionais das hipóteses e por fim, os experimentos, como corolário lógico dos dados recolhidos e de toda a especulação abstracta das fases anteriores. Ou seja, nesta última fase, tomariam lugar os objectos contundentes e aqueles cortantes, para o desenvolvimento das operações cujo grotesco ou não, se escusa por aqui de relatar.
Poderia ser também este o método pelo qual, os Baaden-Meinhoff, na Alemanha dos anos 70, procederiam no seu empenhamento ideológico e terrorista?
É por isso espantoso, como esse internacionalismo panfletário e revolucionário e o conjunto de incêndios sociais que despoletaram à bomba e ao tiro, alguma vez chegasse a acreditar e a cair, no seu próprio maniqueísmo lógico, deveras pouco inteligente, como se toda a fenomenologia do mundo, a sua infinita e inabarcável diversidade, pudesse, por simples exercício, ser recambiada a um conjunto de teses empacotadas num livrinho dito de manifesto comunista. E mais espantoso ainda, é como tão pouca substância económica e filosófica (que não fez mais do que chutar para canto, algumas das questões prementes e fundamentais da ontologia humana) pudesse por sua vez, dar origem a tanta outra literatura, tão politicamente empenhada na forma como discutia os pormenores da primeira, perpetuando vezes sem conta, esse optimismo intelectualmente sobranceiro do Homem, em relação a si e a tudo aquilo o que o rodeia. Aparentemente, acreditava-se, o segredo do universo e da condição humana, o pão libertador dos povos, havia sido finalmente desvendado e estava ao alcance da própria mão, da coragem, do empenho, do desejo de tornar realidade aquele materialismo científico, a sociologia das engrenagens alimentada pelas massas instruídas no catecismo divisado por Marx. Os tiros, ou as bombas e o assassínio, eram questões de mero pormenor, nesse desiderato resplandecente, que alguns um dia julgaram possível abrir, para todos os outros.
Não há propriamente que censurar a Ulrike Baader, ou aquilo que dela resta e repousa numa qualquer estante ou gaveta de uma entidade obscura, num Länder alemão. O erro de Ulrike foi achar que poderia protagonizar esse sofisma maldito e assumir para os outros, aquilo que a sua grande maioria não quisera – ser parte de uma sociedade sem classes, desprovida da moral dominante de inspiração judaico-cristã, aonde o modo de vida burguês e capitalista, seria uma extravagância histórica, derrubado pelas suas próprias contradições e pelos inestimáveis contributos de uns tantos iluminados, que pela suas acções contra o capital e seus agentes (leia-se, pelo assassínio, sabotagem e extorsão) ganhariam nas praças, a réplica de si mesmos sobre num pedestal. Talvez Ulrike Baader ambicionasse isso, ser uma dessas estátuas, indicando o caminho… Contudo, aquilo que dela restou, não foi essa indestrutível qualidade do bronze, foi antes a natureza perecedoura da sua massa encefálica.

Parte II.

Desconheço o destino que o funcionalismo alemão dará a esse fragmento sinistro da República Federal. Isso, agora, talvez pouco importe. A única coisa que sei e conheço, é que foi essa ambição de muitos, aquilo que implodiu historicamente e que, com tal implosão, sucumbiu igualmente esse programa manifesto de alterar a própria natureza humana, a condição que todo o Homem sempre conheceu. Sejamos francos: nunca houve nada de mais estúpido do que o programa político, pelo qual, o Homem se tornaria no seu próprio Deus, vendo-se livre de todos os Outros que ancestralmente conheceu e seus modos de adoração. E para se concluir pela estupidez de uma tal ideologia, basta prestar bem atenção na arte pela qual o Joca Talhante, procede ao desmanche do porco. Qualquer semelhante que se dê ao tempo e ao trabalho de escrutinar esse ancestroso ritual, cedo percebe que qualquer porco conhece e tem consciência da sua própria natureza, daquilo que são os seus limites imanentes. Se assim não fosse, não entraria o pobre do porco em sobressalto, sempre que mão humana lhe assenta sobre o lombo. Todo o bicho a quem se cobice pela pá, ou pelos secretos, sabe pelo mínimo aquilo que o aguarda e por isso, tem uma lúcida consciência sobre o seu papel no mundo e a respectiva inserção, na aparente ordem coisas. Não há porco que ambicione alterar o seu estado, aquilo que é a sua condição! Senão, quem haveria de provir ao esmero do seu alimento, aquele que propicie do ping cristalino, e faça crashar índices de triglicídeos? Do mesmo modo, quando tenaz mas pacientemente, se procura que perús emborquem do vinho morangueiro antes de lhes fazer saltar a cabeça, há a perfeita consciência no galináceo, de que o propósito humano em amaciar-lhes as carnes via Baco, segue como culminar de uma dedicação efectiva ao bicho, dedicação que para mais, lhe trouxe inequívoco provento. E sabendo desse fim trágico, partilhará algum peru um programa ideológico, que altere a sua humilde condição? Não. Por isso, partilhando nós com tudo aquilo que é vivo, a conjuntura inerente e irreversível de também um dia deixarmos de existir, de que nos adianta querermos substituirmo-nos ao Criador, e avançarmos em programas colectivos, que nos libertem daquilo que somos? Acaso, algum desses programas, mantém a respectiva exibição nos lugares do mundo?
O facto de o Joca Talhante ter exemplarmente drenado as entranhas e conseguido encher dois alguidares de sangue, que muito bem servirão para encher do bom chouriço (e de finalmente, o coitado do porco ter parado de grunhir, expirado-se a sua condição de vivo, da qual não quis escapar), não pode servir de forma mais eloquente, à conclusão que, no que diz respeito à condição humana, estaremos muito mais próximos de um conceito de necessidade e de substância espinosista, segundo a qual, pensamento e matéria são extensões inequívocas de Deus e certeza do sagrado e do imutável, do que uma qualquer outra rotura marxista, pela qual, Deus seja proscrito do mundo dos Homens, (pelos próprios Homens) e estes possam ser os aparentes senhores de si mesmos, reinando no mundo da matéria, segundo uma outra qualquer condição, deles inteiramente desconhecida.
Pensei assim nesses propósitos de rotura e de fracturação e na maçã, com cuja degustação me entretera enquanto no terreiro, por arte, se desmanchara aquela vitalidade do porco. E ponderados múltiplos vectores, achei que efectivamente, naquela maçã se encerraria a substância espinosista do ente divinamente criado como matéria, pois apesar da acidez, havia nela suficiente açúcar, para que delas voltasse a pedir uma saca cheia, aos espalhafatosos dos Abelhões… E enquanto isso não sucedia, lembrei-me do judeu português de nome Espinoza, polidor de lentes e no elogio que alguém um dia produziu, a propósito da estátua que dele permanece em Haia:

“Maldição sobre o passante que insultar essa suave cabeça pensativa. Será punido como todas as almas vulgares são punidas – pela sua própria vulgaridade e pela incapacidade de conceber o que é divino. Este homem, do seu pedestal de granito, apontará a todos o caminho da bem-aventurança por ele encontrado; e por todos os tempos o homem culto que por aqui passar dirá em seu coração: Foi quem teve a mais profunda visão de Deus” - joseph ernest renan.

A Ulrike Baaden é que já não lhe adiantam, nem as estátuas, nem às maçãs cultivadas no pomar dos Abelhões…

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