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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

clube beretta 2000 - os diários


Ulrike Baader e a desmancha dos porcos.

Parte I.

Talvez não venha muito a propósito mas, quando Ulrike Baader se enforcou em 1976, na sua pequena cela, da prisão de Stammhein, nem ela própria julgaria possível, que depois das bombas e dos assassínios políticos, seria o seu próprio cérebro aquilo que por todo este tempo seria mantido em formol, pelo Estado Alemão. ULRIKE BAADER – dirá numa etiqueta, sobre o amarelo gasto do troféu – 09 de Maio de 1976. Não sei, se para os fins científicos que fundamentaram a sua preservação (assim pelo menos, reza oficiosamente a história) alguma vez o chegaram a cortar, ou se pelo menos, num tom mais divertido, lhe chegaram uma faca, a ver se ele saltava…
Mas não deixa de ser irónico, que alguém que a certo ponto chegou a acreditar que tinha nas mãos a HISTÓRIA, fazendo por isso parte de um movimento proletário, cujas premissas de actuação terrorista, poderiam ver todos os seus futuros vectores e radiais, previamente estabelecidos e determinados numa base sociológica e científica (cujo mecanicismo infalível – do qual Baader era engrenagem empenhada – não poderia conduzir senão ao funeral do capitalismo, pudesse o protagonista dominar todas as teses marxistas e o respectivo enquadramento histórico) acabasse ela mesma, numa bandeja metalizada, servindo o mesmo propósito humanamente meritório, do método científico: primeiro a caracterização, com todas as suas quantificações e medidas; depois as hipóteses, como base primeira de possíveis explicações; em terceiro as previsões, como decorrentes racionais das hipóteses e por fim, os experimentos, como corolário lógico dos dados recolhidos e de toda a especulação abstracta das fases anteriores. Ou seja, nesta última fase, tomariam lugar os objectos contundentes e aqueles cortantes, para o desenvolvimento das operações cujo grotesco ou não, se escusa por aqui de relatar.
Poderia ser também este o método pelo qual, os Baaden-Meinhoff, na Alemanha dos anos 70, procederiam no seu empenhamento ideológico e terrorista?
É por isso espantoso, como esse internacionalismo panfletário e revolucionário e o conjunto de incêndios sociais que despoletaram à bomba e ao tiro, alguma vez chegasse a acreditar e a cair, no seu próprio maniqueísmo lógico, deveras pouco inteligente, como se toda a fenomenologia do mundo, a sua infinita e inabarcável diversidade, pudesse, por simples exercício, ser recambiada a um conjunto de teses empacotadas num livrinho dito de manifesto comunista. E mais espantoso ainda, é como tão pouca substância económica e filosófica (que não fez mais do que chutar para canto, algumas das questões prementes e fundamentais da ontologia humana) pudesse por sua vez, dar origem a tanta outra literatura, tão politicamente empenhada na forma como discutia os pormenores da primeira, perpetuando vezes sem conta, esse optimismo intelectualmente sobranceiro do Homem, em relação a si e a tudo aquilo o que o rodeia. Aparentemente, acreditava-se, o segredo do universo e da condição humana, o pão libertador dos povos, havia sido finalmente desvendado e estava ao alcance da própria mão, da coragem, do empenho, do desejo de tornar realidade aquele materialismo científico, a sociologia das engrenagens alimentada pelas massas instruídas no catecismo divisado por Marx. Os tiros, ou as bombas e o assassínio, eram questões de mero pormenor, nesse desiderato resplandecente, que alguns um dia julgaram possível abrir, para todos os outros.
Não há propriamente que censurar a Ulrike Baader, ou aquilo que dela resta e repousa numa qualquer estante ou gaveta de uma entidade obscura, num Länder alemão. O erro de Ulrike foi achar que poderia protagonizar esse sofisma maldito e assumir para os outros, aquilo que a sua grande maioria não quisera – ser parte de uma sociedade sem classes, desprovida da moral dominante de inspiração judaico-cristã, aonde o modo de vida burguês e capitalista, seria uma extravagância histórica, derrubado pelas suas próprias contradições e pelos inestimáveis contributos de uns tantos iluminados, que pela suas acções contra o capital e seus agentes (leia-se, pelo assassínio, sabotagem e extorsão) ganhariam nas praças, a réplica de si mesmos sobre num pedestal. Talvez Ulrike Baader ambicionasse isso, ser uma dessas estátuas, indicando o caminho… Contudo, aquilo que dela restou, não foi essa indestrutível qualidade do bronze, foi antes a natureza perecedoura da sua massa encefálica.

Parte II.

Desconheço o destino que o funcionalismo alemão dará a esse fragmento sinistro da República Federal. Isso, agora, talvez pouco importe. A única coisa que sei e conheço, é que foi essa ambição de muitos, aquilo que implodiu historicamente e que, com tal implosão, sucumbiu igualmente esse programa manifesto de alterar a própria natureza humana, a condição que todo o Homem sempre conheceu. Sejamos francos: nunca houve nada de mais estúpido do que o programa político, pelo qual, o Homem se tornaria no seu próprio Deus, vendo-se livre de todos os Outros que ancestralmente conheceu e seus modos de adoração. E para se concluir pela estupidez de uma tal ideologia, basta prestar bem atenção na arte pela qual o Joca Talhante, procede ao desmanche do porco. Qualquer semelhante que se dê ao tempo e ao trabalho de escrutinar esse ancestroso ritual, cedo percebe que qualquer porco conhece e tem consciência da sua própria natureza, daquilo que são os seus limites imanentes. Se assim não fosse, não entraria o pobre do porco em sobressalto, sempre que mão humana lhe assenta sobre o lombo. Todo o bicho a quem se cobice pela pá, ou pelos secretos, sabe pelo mínimo aquilo que o aguarda e por isso, tem uma lúcida consciência sobre o seu papel no mundo e a respectiva inserção, na aparente ordem coisas. Não há porco que ambicione alterar o seu estado, aquilo que é a sua condição! Senão, quem haveria de provir ao esmero do seu alimento, aquele que propicie do ping cristalino, e faça crashar índices de triglicídeos? Do mesmo modo, quando tenaz mas pacientemente, se procura que perús emborquem do vinho morangueiro antes de lhes fazer saltar a cabeça, há a perfeita consciência no galináceo, de que o propósito humano em amaciar-lhes as carnes via Baco, segue como culminar de uma dedicação efectiva ao bicho, dedicação que para mais, lhe trouxe inequívoco provento. E sabendo desse fim trágico, partilhará algum peru um programa ideológico, que altere a sua humilde condição? Não. Por isso, partilhando nós com tudo aquilo que é vivo, a conjuntura inerente e irreversível de também um dia deixarmos de existir, de que nos adianta querermos substituirmo-nos ao Criador, e avançarmos em programas colectivos, que nos libertem daquilo que somos? Acaso, algum desses programas, mantém a respectiva exibição nos lugares do mundo?
O facto de o Joca Talhante ter exemplarmente drenado as entranhas e conseguido encher dois alguidares de sangue, que muito bem servirão para encher do bom chouriço (e de finalmente, o coitado do porco ter parado de grunhir, expirado-se a sua condição de vivo, da qual não quis escapar), não pode servir de forma mais eloquente, à conclusão que, no que diz respeito à condição humana, estaremos muito mais próximos de um conceito de necessidade e de substância espinosista, segundo a qual, pensamento e matéria são extensões inequívocas de Deus e certeza do sagrado e do imutável, do que uma qualquer outra rotura marxista, pela qual, Deus seja proscrito do mundo dos Homens, (pelos próprios Homens) e estes possam ser os aparentes senhores de si mesmos, reinando no mundo da matéria, segundo uma outra qualquer condição, deles inteiramente desconhecida.
Pensei assim nesses propósitos de rotura e de fracturação e na maçã, com cuja degustação me entretera enquanto no terreiro, por arte, se desmanchara aquela vitalidade do porco. E ponderados múltiplos vectores, achei que efectivamente, naquela maçã se encerraria a substância espinosista do ente divinamente criado como matéria, pois apesar da acidez, havia nela suficiente açúcar, para que delas voltasse a pedir uma saca cheia, aos espalhafatosos dos Abelhões… E enquanto isso não sucedia, lembrei-me do judeu português de nome Espinoza, polidor de lentes e no elogio que alguém um dia produziu, a propósito da estátua que dele permanece em Haia:

“Maldição sobre o passante que insultar essa suave cabeça pensativa. Será punido como todas as almas vulgares são punidas – pela sua própria vulgaridade e pela incapacidade de conceber o que é divino. Este homem, do seu pedestal de granito, apontará a todos o caminho da bem-aventurança por ele encontrado; e por todos os tempos o homem culto que por aqui passar dirá em seu coração: Foi quem teve a mais profunda visão de Deus” - joseph ernest renan.

A Ulrike Baaden é que já não lhe adiantam, nem as estátuas, nem às maçãs cultivadas no pomar dos Abelhões…

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

clube beretta 2000 - os diários

parte II: o confronto.

um cão fascista

O xico russo bem me havia avisado de que fizesse atenção… de que passasse a ter algum cuidado. E o xico russo, por ser homem de poucas palavras mas sempre de pertinentes cogitações, se um dia o diz ou bem te avisa, é bom que dele sempre faças caso e ganhes tino com as suas palavras, por muito económicas ou simuladas te pareçam: “Olha que já sabem o que andas para aí a fazer… E quem sabe, sabe-o bem e de modo alargado… Não está para vos deixar de rédea solta!”. Os avisos do xico russo, quem sabe, até poderiam tornar-se adágios, ou rimas de rapper. Mas percebendo a substância dos seus complementos, por muito indirectos que surgissem naquela gramática quase cinzelada que era a do xico russo, o aviso, no que a ele respeitava, estava dado. Que eu fizesse atenção … eu e todos os outros, no Clube Beretta 2000.
E não precisei de muito tempo para que a preocupação do xico russo me fosse sinalizada, tornando-se palpável. Ontem do outro lado da barricada ideológica a partir da qual fundamentávamos e centrávamos a actividade do Clube Beretta 2000 surgira o aviso em tom de ameaça.

Cuidado.
São da revolução,
Os olhos que vos seguem,
Carregando neles a utopia como ilusão,
O caminho de um outro sistema que perseguem.

Há seguramente coisas melhor escritas na prata dos chocolates bacci, ou nas tampas dos iogurtes com sabor a noz de macadamia da danone (as grandes companhias, por vezes, até gostam de surpreender e agradar aos seus clientes). Agora, independentemente dos méritos literários ou líricos que possam ser reconhecidos àquela frase composta e recortada a partir de palavras impressas em Jornal (creio que algumas delas teriam sido inicialmente impressas no terras ou no correio da feira) a ameaça e o propósito que resultam daquela composição eram claros: de um lado estão vocês, os fascistas, os adoradores de hóstias, venerando os padres, vocês, os peregrinos de Santa Comba Dão. Do outro estamos nós, os bons de sentimentos, os cosmopolitas, os racionalmente determinados e não tementes a Deus, os socialmente piedosos, mas infelizmente ainda órfãos de uma revolução.
Não importa agora considerar sobre a justiça ou injustiça desses maniqueísmos ideológicos como que, do outro lado, uma grande parte das vezes, nos catalogam. A complexidade das nossas ideias, o argumentário que fundamenta o conjunto das nossas acções e este caminho sinuoso que resolvemos percorrer para a respectiva afirmação, é difícil de ser reduzido a pequenas frases que consistentemente exprimam a substância daquilo em que politicamente nos encontramos empenhados. Mas, como algumas vezes já ouvi, adoradores de hóstias? Peregrinos de Santa Comba Dão? Do outro lado sempre encontrei alguma preguiça intelectual na tentativa de objectivizar minimamente o corpo de ideias que nos motiva. Ser-se liberal é quase sempre equivalente a ser-se fascista e então acreditar-se na vida para além da morte, é ser-se no mínimo estúpido, no máximo, um doente mental. Isto deverá ser motivo de preocupação para nós, pois a ignorância torna-se também mais um adversário: já não bastará o confronto, o empenho físico e os riscos que ele implica, não bastará a dificuldade deu afirmar de um modo claro aquilo que defendemos. A pior coisa de todas é enfrentar a ignorância das pessoas, a incapacidade de perceberem a complexidade de todas as coisas e por essa razão, o impulso de tudo reduzirem ao preconceito, ao jargão ideológico repetido vezes sem conta, ao vazio da demagogia exaltada dos pobres e oprimidos contra os poderosos sem coração. O que importa a todo o custo, é sabotar estes últimos, ainda que eles sejam muito poucos, ou nem existam…
Mas recebida daquele modo a ameaça, isso seria o sinal de que tudo iria aquecer. Como se o calor já não fosse o suficiente por estes dias de Novembro… e era isso de que ainda nos queixávamos, eu e um rafeiro alto e castanho que me seguia em passos vagarosos, a uma distância prudente, enquanto subíamos dificultados pelo calor a ladeira que em Fornos, nos conduz ao largo da Igreja. Tudo estava calmo ás três da tarde e não nos ocorria outra coisa senão este provável engano de Estações, que pela sua macieza e bondade, nem incomodaria de sobremaneira. Ouvia apenas os meus passos… E pensar que no mundo, ou na maior das proximidades, a demência e o receio que domina alguns, nos tornaria por peregrinos à campa do Salazar…

sábado, 8 de abril de 2006

clube beretta 2000 - os diários

Parte I: introducing joca talhante

Passara a haver um lugar no Clube Beretta 2000 que se tornava necessário preencher, agora que o alfredo da tijuca se tinha de uma vez mandado para a Ucrânia, correndo o sério risco de lá chegando, lhe darem uma traulitada e o desmontarem como fazem aos legos (sendo mais gravoso o facto de, se o voltassem a encaixar às peças, isso já de nada lhe adiantar).
Esta ausência motivada pela concorrência directa do tráfico de órgãos internacional sobre as actividades que desenvolvíamos, foi de alguma maneira bem-vinda pelo resto de nós, pois já ninguém podia aturar o alfredo da tijuca a tirar medidas a quem passava, catalogando-as segundo morfologias físicas constantes de um quadro com que se fazia acompanhar e depois extrapolar sobre o preço a que poderia vender os rins e os pulmões no mercado. A essas sindicâncias físicas e extrapolações, imputava o alfredo da tijuca sempre a respectiva margem do lucro, que como pudemos perceber, poderia ser substancial. Assim, qualquer coisa que fosse do tijaquim das malotas (apesar de ser mais fácil surrupiar-lhe os órgãos, atento o seu estado de embriaguez permanente) isso de pouco valeria num mercado com sérias restrições ao consumo de álcool – por exemplo, as democracias nórdicas – mas já poderia valer de alguma coisa precisamente na Ucrânia ou Bielorússia , já que a cirrose aí, constituí apenas mais um modo de vida que concorre com os outros. Agora se considerássemos indivíduos como o razz ou o biela, indivíduos limpinhos, alimentados com as vitaminas e as laranjas que crescem nas árvores do quintal e a gordura do porco criado em casa, isso teria colocação em qualquer parte do mercado mundial e a bom preço, logo com uma margem significativa.
Esse convencimento no lucro fácil chegara a levar o alfredo da tijuca a propor ao razz, por uma boa maquia, a prescindir de uma vida com dois pulmões e dois rins – ficaria com um deles de cada lado, pelo menos para manter o equilíbrio. O razz, impulsivo, pregou-lhe um murro no focinho sem mais, e disse-lhe para ter cuidado na Ucrânia, não fosse um dia estar o alfredo da tijuca a prescindir de outras partes do corpo, permitindo, para sobreviver, a sua frequência a desconhecidos. Meio atordoado, o destinatário do aviso não deve ter chegado a perceber...
E assim era, atento aquele lugar para o qual se procurava um dono, que me encontrava presentemente no talho de Fornos para trocar impressões com joca talhante, uma vez por ele despachada a clientela. Por ora, ela não era muita: eu e um casal de namorados que se encostara ao balcão e que logo desancara na marmelada, enquanto o Joca talhante limpava os cinco bifes da vazia e cortava os peitos de peru que antes lhe haviam pedido, voltando eles por uma vez mais aos apalpanços e à mão no presunto, depois de acrescentarem meio quilo de costeletas de porco e entremeada ao pedido. Por fim, mais quilo de carne picada de primeira. E por incrível que tal possa parecer, havia alguma sofreguidão naquele roço inusitado e que se prolongou por todo o tempo do avio. Eu sentia-me a metade de um porco desmanchado, frio, pendurado num gancho e assistindo àquela desconformidade, sem que contudo o joca talhante mostrasse pelo episódio algum incómodo. Afinal, deveria ser clientela habitual e cuidar da carne era o seu ofício. Felizmente, carne picada, bifes da vazia, peito de peru, costeletas e entremeada era tudo aquilo que, para já, esses libidinosos do talho pretendiam. O que fariam depois com tanta carne, não é da minha conta.

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Parte II: afiando as facas

Não fizéramos qualquer menção ao presenciado quando nos cumprimentamos. Havia já algum tempo desde a última vez que me demorara à conversa no talho de fornos com o joca talhante, e ele entusiasmou-se com facto de estar ali com algum tempo para a conversa.
O joca é tipo que engana. Ele não se circunscreve à ciência do corte ou à matança do porco e a usar para o efeito, os aventais cobertos de sangue e uma luva de malha metalizada. Como de resto imaginava, depois de afiadas as facas e algumas trivialidades, estabelecera-se um novo patamar de conversa: “sabes X., no outro dia passava por cedofeita e reparei em algo lapidar inscrito nas paredes. “O cidadão – essa coisa pública – mata o Homem”. Caro X., isso não mais me saiu da cabeça pelo resto do percurso pela rua do Breyner e pelo tempo que passei espreitando as galerias da rua da Boa Nova e de Miguel Bombarda. Ainda agora tal me lateja da mesma forma na cabeça. O racionalismo filosófico e a sua expressão concreta, humana e temporalmente situada, a que designaram por cidadão (nesse brilhantismo filosófico dos séculos XVII e XVIII, ainda tratado como criatura de Deus!) foi posteriormente objecto de um primeiro abastardamento mecanicista de inspiração Comtiana, cujo programa sociológico se permitia considerar como possível, reduzir esse mesmo indivíduo – agora, simples cidadão e jamais criatura de Deus! – a bases experimentáveis e sobretudo condicionáveis!”.
O joca talhante recolheu duas pesadas facas de lâmina larga, afiou-as uma na outra e desatou a seccionar partes de frango, usando de enorme veemência física nos golpes. Depois prosseguiu: “Essa fé monstruosa na ciência e nos seus métodos, que constituiu a primeira ofensiva sobre a verdadeira natureza do Homem, foi depois agravada pelo disseminar de um delírio colectivista, económica e filosoficamente assente nos ensinamentos de marx e engels, e que fez estabelecer toda uma nova dimensão de possibilidades, que dificilmente se compreende: o cidadão e o Homem que nele restava, individual e sociologicamente condicionado pela metodologia Comtiana, poderia depois a um nível diverso, ser motivado e dirigido como massa acrítica e indistinta, ao estabelecimento de uma sociedade de cariz colectivo e desprovida de classes, manobrada assim no sentido de para sempre eliminar privilégios. O Homem - a criatura de Deus –havia sido transformado pelo racionalismo em cidadão, e depois em ser alheio a qualquer religião que não a do Estado e seus fins, pela ciência, fosse ela de inspiração sociológica ou socialista.”
O trabalho algo ensurdecedor de desconjuntar na tábua, unidades antes nomeadas como frangos, havia sido de igual modo finalizado pelo joca e tal deve ter inspirado o seu remate final: “X., do Homem, do indivíduo, das possibilidades de expressão e de vida que ele encerra como ser vivo e como criatura de Deus, já nada resta. Qualquer um de nós que não se resigne a este enquadramento previamente escolhido, que nos é imposto em todas as dimensões pelo Estado, não faz outra coisa senão esbarrar em paredes. O propósito já não é nosso, ele apenas será permitido se prosseguir ou se se enquadrar naquilo que são os interesses do Estado e seus fins. Se calhar, num futuro, nem na morte poderemos ser verdadeiramente livres: é que eles já andam atrás do meu e do teu património genético!”
Para mim o joca talhante estava contratado. Nada mais seria necessário, o lugar preenchido. Comprar uma pistola Beretta era o esclarecimento e o pormenor que faltava.

quinta-feira, 30 de março de 2006

clube beretta 2000 - os diários


Prossigo em velocidade pelas curvas que nos fazem ascender ao centro das coisas, ao espaço que mais se estende e maior largura ocupa em Fornos, a praça na qual ainda domina a Igreja e o Centro Paroquial. Chego aí desocupado e amorfo no final de mais um dia, acelerando, surgindo imprevidente do sul, trazendo comigo a impressão de que o calor se acumula primeiro, e depois se exterioriza e se expande nas coisas, de que o conforto quente que nos preenche a roupa agora em demasia, vai também tomando conta das paredes, dos modos, da língua e torna então difícil olharmos os olhos dos outros, que passam. É uma impressão da primavera que se adivinha, a benção de um país ao sol que ganha corpo, finalmente aviando o frio e a humidade, um país que têm a disposição dos raios e da luz e sente que é chegada a paz do tempo que o favorece, tornando-o disposto à alegria dos meses, à descoberta do mundo sentado nas esplanadas. Fazendo passagens de caixa, cortando as curvas, eu adivinho todo o sol dos outros dias.
No largo, parei e observei os mais velhos sentados nas sombras, reflectindo os verdes iluminados das folhas dos plátanos. Este é o país calmo e maduro da pele escura, o país senhor de si mesmo, senhor do tempo e da luz sobre o mar, o país que envelhece de serenidade pois nada mais tem a provar, e a quem nada mais persegue senão a certeza do seu lugar no mundo – o país com irmãos países de distantes lugares, a quem a inconcebível distância não fez perder uma igual raiz de comunicação e de culto, uma igual predisposição ao sol e ao tempo que se estende para nós, na areia das praias.
Tu olhas, mas não acreditas que possa ser esse o lugar, esse o segredo que trazemos escondido de todo o planeta e de todos os seus homens. Não há nada que melhor nos defina, que não o sol, que não a terra, que não o mar. E por isso, há imensidão naquilo que nos alegra.
Prossegui de janela aberta, passando o restaurante "Cruzeiro", fazendo outras curvas adiante, lançando a mão ao calor, à brisa quente que amacia o metal e acelerei pelo paralelo, ao sol da Piedade... vive a minha pátria em lugares pequenos, chamados Fornos.

* ... an you will know us by the trail of dead - EP "The Secret of Elena´s tomb"

sexta-feira, 24 de março de 2006

clube beretta 2000 – os diários

Tupperware e miúdos de frango

Coisas há para as quais se torna difícil estabelecer uma explicação, por muito que seja o esforço posto na tentativa de alcançar uma sua razão lógica. Quando depois desse empenho intelectual, continuas sem coisa nenhuma, sem razão aparente, então é porque essa explicação não existe, ou existindo, não se reconduz á categoria da experiência e do raciocínio. E não se estabelecendo ela nessa plataforma comum ao Homem, como ser pensante, capaz da inteligência, convocarás posteriormente, as fenomenologias, os credos, as aparências, os espectros, os assombramentos ou até graves disfunções, que pelo menos têm o grandioso mérito de remeter e fazer esquecer, classificando, o que se torna difícil de conhecer, ou que muito simplesmente não alcanças.
Ora, a pura estupidez não cabe em nenhuma das anteriores categorias assim definidas, pois nem pode ser sofisma mais ou menos elaborado, produto de razão e inteligência, nem pode ser tomada por uma qualquer entidade espectral, que se apresente para lá da experiência sensível de que somos capazes. Pelo contrário. A estupidez não é nenhuma aparição, é bem real. Confronta-nos todos os dias e grande parte das vezes, acaba por se constituir num autêntico desafio á maior ou menor inteligência.
É precisamente esse desafio com que termos sido confrontados e nos temos debatido, desde o dia em que, na habitual cerveja das sextas-feiras no café tareco, o alfredo da tijuca nos comunicou que estaria umas semanas fora, mais concretamente em Radomysl, arredores de Kiev, aonde o seu penn-friend ucraniano – aquele que lhe havia remetido por via postal a AK – 47 búlgara às peças – o instruiria, fazendo luzes sobre o tráfico de órgãos humanos, os respectivos circuitos internacionais e a estrutura e os passos necessários para que ele, alfredo da tijuca, pudesse criar a respectiva delegação ou filial portuguesa, dedicada àquele comércio, aparentemente, em Fornos. Pois...
Passando a ponte do farinheiro no ford capri, cortando à direita e por ali descendo, ouço “Little Sister” dos QOTSA e são miúdos de frango aquilo que me vai ocupando a cabeça. O sol não é muito. Não sei se muitos partilharão desta teoria, mas creio que por razões que não foram ainda estabelecidas – sem que isso necessariamente nos remeta para o sobrenatural – em alguns contados indivíduos, são precisamente miúdos de frango aquilo que preenche a respectiva caixa encefálica, não o imaginado cérebro! Estão lá corações, moelas, fígados e outras partes inominadas do mais comum e vulgar frango, tudo com aquela coloração escura, acinzentada, e a consistência granulada que assumem depois de cozidos (sem molho pica-pau!). Não digo e não penso isto a despropósito. Ao meu avô cheguei a ouvir dizer que um outro tijuca qualquer, de tempos passados, havia também feito saltar miúdos de frango pela cabeça, quando a fez rebentar com bala de revólver, o que muito impressionara a vizinhança e a redondeza, que então atribuíram o fundamento para aquela imprevista refeição rápida, a obra do diabo! A genética estava ainda longe de fazer o seu caminho e avançar os porquês para vacas com duas cabeças, macacos de três olhos e coelhos com lã de ovelha. Os tijucas – pertençam eles a que geração pertencerem – é que devem ter alguma relação com tais e recentes problemáticas, de combinações ypsilon e xis, pois são metade homens, metade galinhas. Torna-se assim evidente que, trazendo miúdos de frango na cabeça, são de igual modo alternativos os circuitos de raciocínio que percorrem, os quais, dificilmente, se podem contrariar – pelo menos para aqueles que sejam orgulhosos possuidores de um cérebro. No fundo, é uma luta desigual porque, contra homens-animais, a única forma de encerrares trocas de opinião ou discussões (quando a isso te permites) é, ou cortar-lhes a cabeça, ou dar-lhes uma traulitada no cachaço. É evidente que tal nunca acontecerá com o alfredo da tijuca, e julgo que com os seus descendentes. Apesar de considerarmos a sua condição como híbrida, é alguém que se estima, que inclusivamente têm uma arma de guerra guardada no armário, o que em caso algum retira a constatação de que aquilo (o alfredo da tijuca) nunca encaixou lá muito bem! Por isso desisti. Não dedicarei mais partes de inteligência a descobrir razões para a estupidez, razões que expliquem pretender alguém traficar córneas, rins e fígados humanos, provavelmente enclausurados e despachados em caixas de tupperware, para os vender a preços especulativos, depois de haver obrigado outrem – sabe-se lá por que métodos e em que condições de higiene – a “doá-los” ao mercado. Não sei, parece-me tudo demasiado torcido para quem cresceu em terra agrícola. Mas esse é o prejuízo que decorre da sua presente condição suburbana: trazer-nos o desconhecido, o que não julgávamos possível.
Não deixo de qualquer forma de me confrontar com um sério e tenebroso pressentimento: indo o alfredo da tijuca à ucrância – há quem me pergunte aonde é que isso fica! – passando uns dias nos arrabaldes de Kiev – no que concerne a dizer o que é que isso igualmente possa significar, confesso também a minha ignorância! – pergunto-me se não é a ele mesmo, ao alfredo da tijuca, aos seus viçosos rins, ao seu algo danificado fígado, ao seu olho de lince, aquilo que efectivamente os eslavos andam atrás! Temo que mal colocando pé em solo ucraniano, lhe dêem logo uma traulitada, ou lhe façam saltar a cabeça e depois o seccionem ás gramas, guardando-o no congelador em caixas tupperware. Resta saber se para um homem-galinha há bom escoamento no mercado. Uma coisa porém me parece certa e é o motivo da minha preocupação: vender coisas às peças, começa a estabelecer-se como uma especialidade ucraniana....

sexta-feira, 10 de março de 2006

clube beretta 2000 - os diários

As conversas com o biela: sobre o indivíduo e o estado

Parte I – a derivação nihilista

Para o biela, circular e viver em Fornos com uma Beretta entalada nos costados era, acima de tudo, uma questão filosófica. Será à primeira vista difícil compreender como é que andar com uma arma (no caso do biela, uma pistola semi-automática Beretta 8000 F Cougar L type P de 9mm) pode ter alguma coisa a ver com uma determinada mundividência, com um determinado posicionamento ontológico sobre as coisas do mundo. Mas isso seria desconfiar do biela! Seria participar de preconceitos relativamente à sua sabedoria e à sabedoria que existe naqueles que nos possam parecer mais humildes. Seria também perspectivar coisas e pessoas, segundo banalizações e estereótipos estafados, desconfiando assim de toda uma bagagem adquirida nos livros e numa vida feita de trabalho árduo. Ora, eu não creio que alguém que vive e trabalha honestamente na sua oficina como mecânico de automóveis, trazendo sempre presa pela cintura uma pistola automática, enquanto simpática e muito diligentemente procede ao alinhamento de direcções, ou faz mudanças de óleo, possa ser reconduzido àquilo que de normal conhecemos das coisas. Não. Algo mais se esconde e o biela estava nos antípodas de toda a superficialidade dos dias, a que se manifesta por empurrões de arrogância e que funciona pela agregação a modelos de ignorância e de hedonismo, modelos de onde está ausente aquele mínimo de cultura e de história, que muito simploriamente assenta na pura sofisticação da imagem que nos limitamos a consumir, e onde assumir qualquer conteúdo ou princípio mais rígido que lhe seja inverso, é proibido. Ignora-se assim, o valor das coisas simples, das sabedorias antigas, o valor da abordagem humilde, ainda que seja muita a cultura e o conhecimento que possamos partilhar.
Por isso (porque, de certo modo, todos no Clube Beretta partilhávamos esta última visão das coisas) se o biela me dizia que trazer uma pistola entalada pela cintura (afivelada pelo cinto), era para ele, uma questão filosófica, eu não poderia deixar de acreditar. Tanto mais, que depois me explicou porquê...
Trazer por sistema a semi-automática não tinha tanto a ver com o assumir de um nihilismo nietzschiano com o qual o biela (ou nós mesmos!) estaríamos comprometidos. Não haveria da nossa parte uma tentativa de tudo reduzir a cinzas, no pressuposto de que existe um profundo engano, uma perversão da verdadeira natureza do homem operada pela predominância e domínio dos valores de tradição judaico-cristã. Não. Nós não havíamos sido corrompidos! É certo, reconhecia o biela, que sendo portador de uma arma, por vezes se tornava difícil resistir a essa derivação nihilista e que às vezes também lhe passava pela cabeça dedicar-se à loucura, metralhando tudo. Mas nada desses pressupostos acabavam por assumir a verdadeira relevância no porquê filosófico da arma. Para o explicar, lembrou-se de convocar um pequeno parágrafo, de inspiração nietzshiana,

“foram os judeus quem, em oposição à equação aristocrática do nascimento nobre, da riqueza, da bravura (bem é igual a aristocrático, igual a riqueza, igual a belo e feliz, igual a amado pelos deuses) ousaram (...) sugerir a equação contrária (...) só os desgraçados são bons; só os pobres, os fracos, os humildes são bons; os que sofrem, os necessitados, (...) são os únicos que são piedosos, os únicos que são abençoados, a salvação é só para eles. Mas vocês (...) os aristocratas, vocês os homens de poder, são para toda a eternidade o mal, o horrível, o avaro o insaciável, o ímpio;”

Muito embora a sabedoria e suas derivações não sejam assunto desconhecido de quem habitualmente o frequenta, a citação, dita num tom algo incisivo, provocou alguma perplexidade no habitual alinhamento do balcão do “Café Tareco” – significativamente atestado, mas que por manifesta infelicidade de metros quadrados, nunca fora grande – tendo eu igualmente notado, que essa mesma perplexidade chegou a ressoar pelos espelhos e alumínios que constituíam o seu singelo elemento decorativo, eles, mais as mesas e cadeira lacadas a verde água onde nos sentávamos. Indiferente, firme, o biela prosseguiu a sua explicação. Se o coitado do Nietzsche, com parágrafos como aquele, acabara por morrer louco, ele, o não menos brilhante biela, estava sobretudo interessado em preservar a respectiva sanidade, vivendo por muitos mais anos como mecânico de automóveis (afastando-se da condição de inimputável!) e por isso rejeitava qualquer entendimento que filosóficamente o pudesse ligar a um super-homem remontado da respectiva loucura, renascido das cinzas do judaísmo e do cristianismo, que posteriormente viesse a restabelecer uma ordem oligárquica entre os homens, cuja inspiração derivaria directamente da antiguidade clássica. Não! O biela perfilhava o Deus monoteísta daquela tradição judia e nada queria ter a ver com a interminável e promíscua sucessão mitológica dos Deuses do Olimpo, cuja própria história confundem, ainda para mais, por gostarem em demasia de se carregar e pôr uns em cima dos outros! Uma vez mais, não! A razão da semi-automática, o fundamento filosófico para a sua permanente presença no quotidiano, estava para o biela umbilicalmente ligada ao liberalismo filosófico-político dos séculos XVII e XVIII, de tradição modernista e pressupostos hobbesianos, nos termos dos quais, o indivíduo, a irrepetibilidade da pessoa humana era e é, a medida única para todas as coisas, o único princípio válido em torno do qual, toda a arquitectura da existência deveria assentar as suas bases. O quotidiano da Beretta era, enfim, a expressão última de um individualismo filosófico feroz que ele procurava desse modo perfilhar, e que no seu entender, era cada vez mais acossado pela opressão do Estado, que pela burocracia e pelo funcionalismo procurava deturpar e distorcer esse contrato ancestralmente estabelecido e no qual o indivíduo era e deveria continuar a ser o seu ente e dominante principal... Hoje, em face da dimensão e do controlo estadualmente exercido sob o mais amplos e diversos domínios da existência, a única coisa a que como indivíduos poderíamos aspirar, era a réstias, a episódios de individualidade, pelas quais o biela estaria disposto a lutar de faca nos dentes.
Por coincidência ou não, mas como pura manifestação desse mesmo individualismo agressivo e senhor de si mesmo, cada vez mais raro, tombara com estrondo no mesmo instante, o tijaquim das malotas. Sabe-se que todo o Homem sempre se movimenta preservando um ângulo recto ao solo, ainda que lhe seja muito difícil manter um rumo certo, ou mesmo tomar uma direcção. Mas o tijaquim, numa demonstração tanto de virtuosismo como de ritual alcoólico, bebera um último copo ao balcão do “Café Tareco” inclinando-se de tal forma para trás que se esquecera dessa aquisição evolutiva. Já estendido, gemeu então ao retardador.... aaiiiii!, mas ninguém lhe ligou nenhuma...

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Parte II – do liberalismo filosófico

Pensei no quanto de agressividade de que somos capazes quando nos sentimos acossados. Pensei que nessa gradação, o desespero ou mesmo a demência poderiam ter um importante papel a desempenhar – das razões que nos impõem ou nos trazem a violência, não vale a pena acreditarmos que nelas, ou depois delas, haverá espaço para um instante de equilíbrio, para o ajuizado. Por norma, é sempre mais violência aquilo que sobra, até que nos comece também a faltar o tempo para a repetir em acréscimos, dando-lhe uma eterna continuidade.
Olhei para fora das duas pequenas janelas do Café Tareco. Com o olhar houve alguma pausa nos ecos e nos sons que lhe conheço. Afinal, era o dia que também se ia encerrando, e Fornos haveria hoje de viver esses dias de transtorno e de incómodo. De há uns anos para cá, semeara-se uma ruindade que entretanto brotara e crescera pelos seus carreiros e pelas ruas. Da identidade que lhe fôramos conhecendo – da gente trabalhando sementeiras no campo, do São Miguel que encerrava todos os anos as suas esforçadas tarefas, dos dias determinados pela som e a presença da luz, do gado, dos cães e de todos os outros animais que nos circundavam os dias – a única coisa que ainda se fazia presente, eram as couves do quintal que se coziam abundantemente na sopa, ou o tutano da mão de vaca que por norma se lhe juntava, ou então, o espectáculo de ver correr galinhas depois de lhes cortar o pescoço (o povo deixara de se juntar e matar porcos, em nome de regulamentos assépticos e veterinários e às vezes, entretinha-se a recordar histórias enquanto as galinhas decepadas esbarravam nas paredes). Fornos era hoje acossada pela impossibilidade urbana, pelo mito de que o progresso surge por desatar a construir paredes ao alto, rebocando-as por fora de azulejo para casas de banho. Fora esse o progresso especulativo dos ignorantes que viraram empresários, que viraram falidos. Fora esse o progresso deixado a meio e que fazia conviver actualmente sementeiras e batatas com edifícios desconexos, implantados aos repelões, e toda uma outra gente que não se respeita e não se conhece de parte nenhuma. É daqui a derivação feroz, o impulso individual e agressivo quando nos impõem caminhos que não escolhemos, quando abandonam os projectos impossíveis. O drama é que em Fornos já ninguém conhece o que quer que seja ...
O tijaquim das malotas lá se deixou ficar estendido e não gemeu mais. Por vezes movimentava ligeiramente o braço direito, fazendo-o correr ao longo do corpo, coçando-se aqui e ali mas deixando-se quedo, a ver se se recompunha. Quem fosse do Café Tareco sabia que bem o poderiam ali fechar, encerrando o estabelecimento, que seria o tijaquim das malotas quem encontrariam na manhã seguinte pendurado ao balcão, já à espera que lhe fosse servido o primeiro bagaço. No Café Tareco, toda a gente condescendia nessa sua vontade de morrer por desgosto (um homem é livre de morrer quando e porque razões quiser!) e por algumas vezes nos havíamos conluiado para que esse funcionalismo piedoso da Segurança Social não fizesse abortar esse seu propósito suicida, enviando-o uma qualquer instituição de solidariedade social, por sempre achar que para o Homem, há esperança. A única esperança do tijaquim das malotas era que o deixassem morrer rápido por congestão do bagaço e não seria o Estado que o iria impedir de fazer da sua vida, o que muito bem entendesse. As suas contas seriam assunto com Deus e não com burocratas bem intencionados apenas com a própria sobrevivência económica. Por isso o tijaquim das malotas contava com a nossa colaboração caridosa para com essa sua última expressão de vontade.
Não por ironia, tudo reforçava o enquadramento que vinha discutindo com o biela e que fundamentava o porquê filosófico das armas, sobretudo como uma afirmação agressiva de individualidade.
No fundo, não havia nada aonde não metesse o Estado o bedelho! Nem o simples desejo de morrer impedia que a diligência do seu funcionalismo nos batesse á porta! O Estado sabia o teu nome, a tua idade, se eras casado, solteiro ou divorciado, se compravas na farmácia espermicida, ou se tinhas com gosto oferecido qualquer coisa de mais valor à tua mulher! O Estado sabia se eras gordo ou se eras magro, se tinhas problemas de epilepsia, quantas propriedades tinhas ou quanto achavas por bem investir na Rua de Ceuta, no Porto. E viria seguramente o dia em que, por razões de saúde pública ou de medicina preventiva, te obrigariam a frequentar rastreios sanitários, de tempos a tempos, onde te enfiam sondas em todos os buracos que trazes, delicadamente apalpando-te os tomates, enquanto te pedem para abrir a boca e para dizer aahhhh!... É por isso que a arma é a tua única solução! O Estado, sobretudo aquele de inspiração social-democrata, tornou-se num pardieiro de zelo e de regulamentos ridículos e inconcebíveis, que apenas servem para justificar os salários que tu próprio pagas! O contrato de inspiração hobbesiana celebrado com a individualidade de cada um, para a necessária preservação dessa individualidade e irrepetibilidade de cada um, foi subvertido pelo Estado e nele, as diferentes dimensões inerentes a cada pessoa humana, é secundarizada por imposições de modelos que o próprio Estado define. Ele estrangula-nos e trata-nos como verdadeiros estúpidos em seu próprio benefício, quase incapazes do próprio raciocínio. E a quem assim não alinha, a quem acredita que algures foi subvertida a relação indivíduo/estado em prejuízo do domínio sobre ti mesmo, do teu destino, não resta senão o poder da arma como afirmação última dessa individualidade que se vai perdendo, assumindo a sua verdadeira natureza humana, do bem e do mal. Neste último aspecto, a arma constituía até um mecanismo de responsabilização quanto ao teu próprio destino, porque te dava o poder da escolha, o poder de o definires e de afirmares a tua existência pelo bem, ou pelo mal que entendas praticar. Com uma arma na mão, não haveria mediadores: eras tu e a consciência da tua história, a consciência daquilo em que acreditas.
É aliás essa opção e vontade estadual de aspirar ao condicionamento da natureza humana, dela obliterarando toda a ruindade e toda a violência (fazendo-se de Deus Pai Todo – Porderoso, criador do universo) em que assenta e motiva o zelo do funcionalismo que o serve, nesse inconcebível propósito. O Homem é objecto de todas as violências e é por isso que nós, no Clube Beretta, pretendemos ser esse contraponto, o outro lado das coisas, contra o consenso e o mimetismo a que nos seus dias, todos os outros se dedicam. O Clube Beretta e a arma que o mesmo pressupõe, não é senão a afirmação dessa mundividência a que todos deixaram de prestar atenção. Se Fornos assim o pudesse também traria Berettas na mão e uma faca nos dentes e o tijaquim das malotas, senão estivesse já morto para si mesmo, enquanto vivia para todos os outros, também seguramente se nos juntaria...

terça-feira, 7 de março de 2006

clube beretta 2000 - os diários


(have love will travel - the black keys)

Fornos, 08 de Março de 2006.

... e em tudo havia uma só vertigem, um só propósito, uma ríspida mas assente impassibilidade. Havia um só domingo para fazer rebentar todo o metal e depois fugir-se a toda a velocidade. Seria obra para palavras nenhumas, obra para se cuspir fogo brotando a pólvora, obra intocada pela piedade ou pela comiseração, apenas dedicada ao nosso espanto e à incredulidade.
No fim deste destempero, do vazio em que é difícil de acreditar, houve no sol um brilho diferente, um acréscimo ignóbil aos factos coleccionados pelo mundo. Sim, seguramente... não fora um domingo qualquer...

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lulas grelhadas logo batatas cozidas

Há uma clara vantagem ao almoço: a de se fazerem acompanhar sempre as lulas grelhadas com batatas cozidas. Por muita que seja a tua fome e por muito que se coma, elas nunca chegam a carregar no estômago, demorando aquelas eternidades gástricas que sempre acontecem aos almoços pesados, servidos por carne mal passada enrolada nos fritos indigestos. Assim, por sugestão minha e apesar da extensa escolha de carnes e peixes disponibilizada, termos todos alinhado pelas batatas e as lulas no grelhador – ainda que elas nos possam saber bem melhor pelo verão! – fora a melhor opção de todos, atentos os desenvolvimentos que seguidamente, bem nutridos mas perfeitamente maleáveis e escorreitos de movimentos, pretendíamos desencadear ao longo da estrada nacional 109 e ligação à A25, na expectativa apenas que o aguardado rodopio domingueiro e automóvel, se tornasse visível na distância.
Acresce que, sendo todos pessoas de educação humilde mas esmera, não houve lugar a qualquer sofreguidão, qualquer palavrear de boca cheia durante a refeição, todos deglutindo com parcimónia – fazendo adequado uso de faca e garfo – esses bichos estranhos e viscosos, que nos levantam a pergunta sobre os universos paralelos concebidos e frequentados por Deus, para que um dia ousasse neste, a admissão de tais criaturas. Para mim – como creio, para todos! – estando infinitamente longe de ser Deus e dos porquês que envolvem toda a sua criação, o tempero e o grelhador continua a ser o único e previsível destino desses animais esquisitos, que com propriedade se qualificam como nem sendo verdadeiramente carne, nem sendo adequadamente peixe. De uma forma muito térrea poderia até ser dito a propósito deles, que o seu único deus criador habitando as redondezas, seria precisamente Asdrubalino da Feijoca que no seu tempero e assadura, os elevava à categoria do sagrado e do divino.
O alfredo da tijuca é que, pelo tempo que demorara o almoço, não largara mão da ak-47, apesar das nossas sucessivas insistências para a alcançarmos e darmo-nos conta dessa áurea matraqueadora que envolve tais armas de assalto, pegando nela e puxando para trás, pelo menos uma vez, a respectiva culatra. Evidentemente que tal só poderia ser feito se tivéssemos a ak-47 nas mãos, o que sistematicamente nos era recusado pelo alfredo da tijuca, que para mais adoptara o quase silêncio e uma certa sobranceria como postura convivencial, não se mostrando tal éticamente correcto, face á tolerância e à liberalidade por todos nós demonstrada quando considerado o facto de termos permitido a sua participação no Clube Beretta 2000, sem que tivesse preenchido cabalmente os requisitos para tanto. Para mim, não era seguramente a circunstância de o alfredo da tijuca arranjar Kalashnikovs na Ucrânia que iria fazer cessar aquela acumulação de pontos que lhe garantia para já e por troca, uma porrada de ciganos. Por mim e perante tal postura, essa contabilidade e acumulação prosseguia.
Porque assim persistia, estranhamente, esteve a arma de assalto encostada à cadeira desse nosso convidado especial, apoiada sobre a coronha, sem que ninguém ousasse tocar, permanecendo perfeitamente visível a todos os presentes àquela hora pelo “O Tasco”, comessem eles lulas grelhadas ou enguias à espanhola. Nenhum melindre ou sobressalto ocorreu. Não há dúvida de que à mesa, sempre o propósito é o do armistício ou o da trégua, nunca o do confronto, ainda que à nossa frente, ao serviço da nossa faca e do nosso garfo, sejam criaturas estranhas o alimento ser subtraído a Deus e à criação.
Eram pois chegadas as horas... Das lulas, nem no prato nem já no estômago havia sinal e foi com a agilidade e a rapidez esperada que depois das contas e da gorjeta, todos saímos... O domingo ampliava o máximo de perfeição que se conhece a qualquer domingo. Sobretudo, porque era convidativo no conforto ameno que o sol propiciava e porque dessa maneira, permanecia favorável aos propósitos por nós delineados, já que nenhuma dúvida existia pelos quilómetros adiante, fosse qual fosse a direcção que pensássemos, que se alinhava um único congestionamento e pior, existia uma única e estreita ideia por milhares de cabeças, repercutindo em uníssono a mesma intenção: a de se fazerem chegar ao Furadouro às manadas, presas ao aconchego automóvel, ao turpor das digestões difíceis e à humidade dos meses que agora se fazia soltar dos tecidos e das roupas. O homem, o chefe de família ouviria adormecido o relato e assim, não importaria às famílias, que muito mais riqueza e diversidade existisse no mundo ... e esse, o seu verdadeiro e inconcebível engano! 2.10 am automatic The Black Keys Rubber Factory. Anunciei a tragédia, a catástrofe em prejuízo dessa estreiteza de perspectivas alinhada ao domingo em manadas, quando fiz girar a chave na ignição... Em sentido contrário, a velocidade proibitiva, afirmaríamos todo um outro lado, toda uma outra dimensão da inabarcável diversidade da existência... Os domingos não podem mais ocorrer, como se fossem uma coisa qualquer...

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

clube beretta 2000 - os diários











uma ak-47 no lugar dos dezassete...

Há coisas que não lembram nem ao diabo, nem ao seu primo ou ao enteado dele, muito menos àqueles que do seu juízo pretendem que se continue a fazer boa conta. É certo que o alfredo da tijuca andava, havia uns tempos, a acumular pontos para uma valente porrada de ciganos - esta coisa de invariavelmente se fazer acompanhar para acções do Clube Beretta com pistolas da concorrência, aborrecia-nos de uma forma efectiva e muito vincada – e também certo é, que nós do Clube Beretta, persistíamos numa intransigência, para alguns incompreensível, no que respeita aos seus pressupostos de integração: ser portador nominativo de uma pistola automática da marca Beretta, fosse ela uma Vertec 96 Inox como a minha, fosse a nova 90two de 9mm ou qualquer outra das restantes linhas compact ou subcompact. O imprescindível era aparecer com uma na mão! Por isso, tirar da gabardina aonde se escondia, uma metralhadora AK – 47, vulgo Kalaschnikov, de calibre 5.45mm, como fez o alfredo da tijuca assim que parqueamos o ford capri à sua frente, ainda para mais, sem qualquer espécie de aviso prévio e com uma naturalidade verdadeiramente absurda, do tipo, olha o que eu trago aqui!, não pode, nem deve ter outro qualificativo e atestado psiquiátrico que não o da pura loucura, o da insanidade, ou do sério e gravoso desacerto emocional. O gesto assaz natural e despreocupado com que o fez, empunhando aquela arma de guerra, teve o condão de me fazer baixar e juntar as mãos nervosas á coronha e o dedo ao gatilho da Vertec 96 e de pôr imediatamente em fuga daquele perímetro, o razz e o quim barbeiro. O biela foi o único que manteve a compostura e creio até, não se ter mexido nem um centímetro.
Foi por isso aos berrros de guarda essa merda pá! e de estás maluco (com a notória excepção do biela) que o alfredo da tijuca foi explicando a sua história, a história da ak-47 no lugar dos dezessete...
Aparentemente frustrado pela nossa sucessiva intransigência e na dificuldade de arranjar uma Beretta genuína e legítima quanto aos seu porte, decidira reactivar um antigo relacionamento estabelecido anos atrás, pelo correio, de um “penn friend” ucraniano, solicitando-lhe informações sobre como adquirir armamento de origem russa, uma vez que acreditava (e nisso acabara por ter inteira razão!) que em tais partes seriam menos as perguntas e menos a burocracia a superar, para se poder disparar um simples tiro. E fora pois a boa vontade dessa alma ucraniana prestável e caridosa, o eslavo que escreve inglês, que lhe fizera chegar da ucrânia, às peças, a dita arma, numa versão especialmente desenvolvida para o exército búlgaro, dentro de uma caixa sobre a qual se poderiam ler frases nas quais se agregavam tanto letras, como números (o alfredo da tijuca tem alguns talentos, mas o eslavo não é um deles). Aparentemente na ucrânia, disse por fim o alfredo da tijuca, comprar kalashnikovs é a mesma coisa que comprar caramelos e castanholas em espanha, no hay ningún, ningúníssimo problema!
Ora, ainda que fosse verdadeiro esse surrealismo de se remeter ou despachar pelo correio máquinas de guerra ucranianas (em versão búlgara) e de as mesmas cumprirem aí a mesma função que as castanholas na espanha (ou seja, fazer barulho!) persistia o problema habitual no que ao Clube Beretta e ao alfredo da tijuca dizia respeito, coisa que, como dissemos, lhe vinha até assegurando a possibilidade de um dia presenteá-lo com a tal porrada de ciganos. Mas havia um dado novo na equação: o esmero, empenho e a bondade do penn friend, cuja solidariedade e apego internacionalista não poderia ser por nós frustrada – afinal que melhor coisa no mundo haverá, num sentido estritamente económico, do que falar-se inglês e dedicar-se ao tráfico de armas? A esta mesma preocupação acrescia igualmente a clara percepção em todos, de que uma coisa seria fazer a alta velocidade o sentido Furadouro-Fornos num domingo solarengo empunhando pistolas automáticas, num ford capri (por muito cartaz balístico que se associe àquelas armas) outra coisa era fazer a mesma estrada, no mesmo carro, no mesmo domingo solarengo com as mesmas pistolas e respectiva fiabilidade balística, às quais se acresceria toda a história, toda a cultura e o poder matraqueador de uma ak – 47 em versão búlgara.... Seria qualquer coisa digna de se ouvir nos próprios Cárpartos, ainda que deles estejamos tão longe!
Eis pois o difícil dilema do Clube Beretta 2000, cuja resolução teria necessariamente de ser encontrada a tempo de se poderem comer descansados, umas lulas grelhadas no restaurante “O Tasco” no Furadouro. Afinal, era Domingo e o sol não cessava de brilhar....

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

clube beretta 2000 - os diários

CÃO ESCURO – a indisposição

Não estava bem disposto CÃO ESCURO. O tom da música – em excesso de decibeis – não nos pareceu nada convidativo quando, atrás de nós, a porta se fechou. Creio que era “relationship of command” dos At the Drive-In aquilo que ferozmente batalhava as colunas. Lembro-me que fora recomendação do quim barbeiro, quando por coincidência nos havíamos todos encontrado na Fnac do GaiaShopping (o quim barbeiro é um melómano bem documentado sobre o punk-rock e eu próprio tenho alguma coisa dos The Hives por sugestão sua). Esse entusiasmo do quim barbeiro pelo punk-rock obriga-nos aliás, a particulares cuidados sempre que se trata de rapar ou de dar um jeito na caraminhola: nunca pôr os pés na barbearia de Fornos, quando haja um pouco mais de entusiasmo com algum novo grupo Punk-rock. O quim, conhecendo e estando atento aos fundamentos estéticos em que se assenta a aparência visual de cada uma das caraminholas das redondezas (e isso incluí rapaziada nova, vinda do Couto de Cucujães) fica sempre demasiado agitado com as tesouras nos dedos...De qualquer maneira, CÃO ESCURO sentara-se novamente no sofá, de onde provavelmente saíra para nos abrir a porta e permanecia mudo. Eu entretanto confirmava que era “relationship of command” aquilo que continuava a manifestar-se de forma demasiado saliente nas colunas (“arcarsenal” a certa altura tornou-se mesmo insuportável) mas permaneci sentado no sofá. O quim barbeiro é que ia demonstrando algum entusiasmo pela gritaria absolutamente louca com que Cedric Bixler finalizava “arcarsenal”. Eu achava que tudo na música era bom para acabar de forma tão primitiva e ensurdecedora, mas continuei ali, sem abrir a boca... até que CÃO ESCURO falou. A início ficou-se por considerações de circunstância, muito pouco abonatórias e muito pouco relevantes. Se calhar, disse CÃO ESCURO, não teria sido o melhor dia para nos mostrarmos pelo Furadouro; que não acreditava que também nós, tivéssemos dado um contributo para atravancar de automóveis o enfado de domingo dos seus ocupantes, os gordos de mercedes, os entediados de vinho, que acham que o furadouro é bom para se distraírem da mulher e da sogra, ouvindo relatos e comentários da bola. CÃO ESCURO disse por esta ocasião, para ele mesmo, num tom de desespero: “Furadouro, a meca da peregrinação do tédio de gente e animais, ouvindo relatos, ressoando vidros de pés sujos e descalços.” Depois, em tom provocatório, perguntou se também nós não queríamos passar a tarde a fazer uns castelos de areia. Rimo-nos, e eu falei-lhe do ford capri, mas isso não o entusiasmou, muito embora o semblante se apresentasse um pouco mais pacificado. Por fim vomitou: “Caro quim, caro X. bem sabeis que muito gostava deste horizonte alargado sobre o mar, dessa calma profunda das tardes de inverno, ainda que fosse grosseiro e impiedoso o vento e o mar não exibisse outra coisa senão a violência que não disputamos. Não havia gente, nem haviam carros. Se alguma coisa acontecesse (e algumas graves e demasiado tristes sempre acontecem em sítios como este) nunca era para se saber ao certo, no pormenor, o que quer que se tenha passado – de tudo, ficava sempre algo para ser dito e o que havia para ser dito, também nunca era grande coisa. Aqui, éramos muito poucos para preencher todo o novelo das coisas tristes ou dos crimes, das razões para se amar ou morrer. E nesses poucos que éramos, acabava sempre por ficar uma versão encantada daquilo que não tínhamos chegado a perceber ou a conhecer. Só a praia sabia a verdadeira história das almas, que o mar passara a murmurar. Hoje, sendo domingo, esta terra, este pardieiro da construção civil, arrasta demasiados carros e o demasiado suor das pessoas. A calma e o silêncio deixou de acontecer neste lugar, por levarem sempre demasiados encontrões. Mas, acreditem, hoje não é isso que lamento...”

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CÃO ESCURO – o desapontamento

O colectivo At the Drive-in e Cedric Bixler avançavam com “mannequim republic”, o quim barbeiro abria e fechava ritmadamente os dedos, pensando nas fartas caraminholas da Barbearia de Fornos, mas faltando-lhe as tesouras, e eu esperava que quando me pusesse dali para fora (e pelo tom da conversa não faltaria muito para que tal acontecesse) fosse o motor do capri aquilo que imediatamente faria soar, após rodar uma só vez as chaves da ignição. CÃO ESCURO, no entanto ia prosseguindo em tom de lamento: “vocês sabem que sempre acreditei que uma determinada ordem política, poderia ser deduzida de princípios abstractos, racionalmente válidos, supondo a ideia de bondade inerente à natureza humana, á qual aqueles princípios se imporiam. Assim acreditando, também sempre constatei a absoluta incapacidade da sociedade em geral em elevar-se ao nível daqueles padrões racionais abstractamente percebidos, em razão da falta de conhecimentos, da ignorância ou incompreensão ou da obsolescência das instituições económicas, políticas e socias. Por isso sempre confiei no Estado, na sua capacidade reformadora e modeladora em prol desse colectivo social, na sua vertente educacional e nos métodos coercitivos que usa para remediar tais defeitos. Porém, hoje acordei com uma ressaca ideológica profunda que me traz de sobremaneira indisposto. Olhei para mim mesmo, para aquilo que adquiri, para aquilo que possuo e nada disso veio em razão daquela racionalidade posta no intervencionismo estatal que sempre defendi. Tudo o que tenho (e é muito!) alcancei-o como feroz especulador bolsista, fazendo deslocar informaticamente capital pelo globo, em função da remuneração monetária que para ele, poderia adquirir. Fi-lo aqui mesmo, junto ao computador, na mais absoluta expressão capitalista e individual e estando-me perfeitamente nas tintas, para aquilo que poderíamos alcançar colectivamente como povo, como social democracia progressista ou mesmo como revolução... ”
A partir daqui, quer eu quer o quim barbeiro, não quisemos ouvir mais. Deixamos CÃO ESCURO, suspenso, nessa sua constatação de antigo revolucionário, de intelectual de esquerda, sendento e desinteressado educador das massas, que conclui que toda essa retórica, ou do socialismo moderno e científico, ou da social-democracia progressista, estava a anos-luz do seu exemplo de vida, que em momento algum prescindiu de todas as benesses e mordomias culturais e económicas com que o capitalismo puro e duro lhe poderia presentear. E isso, essa contradição nos termos é que fora para muitos de nós (entre os quais os do Clube Beretta) a verdadeira inspiração... Constatar que nunca ninguém faria aquilo que incendiariamente proclamava, ainda que tais proclamações tivessem presentemente uma vida constitucional e jurídica! O nosso propósito sempre derivou daí, de observar alguém ideologicamente comprometido com algo que não existia e cuja prática contradizia em todos os aspectos o seu manifesto, a sua cartilha. Por isso quando nos viemos embora, não lamentamos o desapontamento de CÃO ESCURO com ele mesmo, nem o facto de, naturalmente, o seu ridículo não nos poder continuar a servir de inspiração. O Capri pegara à primeira e era “die all right!” coincidentemente dos “The Hives” que soava na radiola, o que parecia muito apropriado, atento o congestionamento domingueiro estúpido, que continuava a atravancar o sentido do Furadouro. Pensei deste modo: fazer o sentido inverso num capri a alta velocidade e de arma em punho, poderia ser deveras interessante... Este amor do quim barbeiro pelo punk-rock é que ainda há-de prejudicar a sua boa reputação junto da clientela e das caraminholas da redondeza! Não há forma de se calar e de se mostrar quedo... "Hey! I've got a message, and tonight and Im gonna send it..."

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

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Fornos, 05 de Fevereiro de 2006

o ford capri

Não era de 1979 o Ford Capri que estivera por tempos aos cuidados do biela e que nos acompanhara na discussão estratosférica sobre a república. Era de 1973. Agora, por dois mil e quinhentos euros a pagar até Agosto em prestações mensais e sucessivas, passara igualmente a constar do meu acervo de proprietário. Não que seja grande coisa ou de grande monta em termos monetários, esse acervo em meu nome... pelo inverso! Sendo exíguo, ele distingue-se antes por compreender elementos pouco vulgares, de um gosto preciso, que poderão aliás ser mal entendidos pelo comum dos cidadãos, senão vejamos: uma reprodução de quadros de josé de guimarães da série “Chinese Stories” de 2002 em acrílico sobre papel; uma iguania, iguana, iguana com o pretensioso nome de freitas, cuja alimentação me obriga à desagradável tarefa de fritar escaravelhos todos os dias no micro-ondas; uma pistola semi-automática Beretta Vertec 96, passaporte necessário para integrar o Clube Beretta 2000, bem como as actividades por si definidas; e agora, um Ford Capri de 1973, de 85 cavalos, em relativo bom estado, comprado em quinquagésima mão ao biela e pelo qual me endividei até Agosto de 2006. Este, o meu património, dívidas incluídas. O facto de me encontrar presentemente a “falar” para a anabela (aliás, já o vou fazendo à 6 anos!) nada conta para estas quantificações de ordem material, uma vez que nada de estabelecido existe quanto a futuros compromissos mais sérios ou mesmo sacramentados. De momento, trata-se antes de um simples mas indesmentívelmente agradável usufruto...
Assim e para todos os efeitos (nomeadamente para os fiscais) o Ford Capri de 1973 de cor preta, estofos em couro e grelha metalizada irrepreensível, constituía um dos elementos (senão mesmo, o elemento!) mais precioso dessa contabilidade patrimonial que me era juridicamente reconhecida, enquanto torneiro mecânico de profissão, residente em Fornos.
E como a qualquer proprietário digno desse nome, lhe dá gozo tirar partido das coisas que possuí (creio que a propriedade das coisas nada mais serve do que para isso mesmo, dar-lhes uso e pelo menos é isso que sempre procuro fazer com alguns dos meus itens, como a Beretta Vertec 96, nem que seja para mandar uns tiros para o ar) resolvi aproveitar este enxerto primaveril acontecido em pleno inverno, entrar em contacto com o razz (só mais tarde irei com a anabela ao cinema) e guiando o Ford Capri de 1973 de meu domínio, fazer uma breve visita ao nosso grande mentor político-filosófico, ser profundamente inteligente mas enigmático, por ora estabelecido na praia do Furadouro, que unicamente responde pelo bizarro nome de CÃO ESCURO... Uma coisa houve contudo, que logo me desagradou: o Ford Capri não pegou à primeira....

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Clube Beretta 2000 – os diários


as conversas com o biela: a república

Por norma o biela têm sempre imenso que fazer. Por isso, sempre que discutimos assuntos que se desenvolvem a partir de conceitos abstractos e que, quer eu quer ele, pretendemos filosófica ou politicamente bem definidos, há sempre, durante a discussão, uma consciência de um profundo deslocamento espacial à medida que aquela se desenvolve. Invariavelmente, ela é acompanhada na sua progressão, pelo esforço posto pelo biela na substituição de uma junta da colaça, pela verificação e desmontagem de cambotas, pela substituição das velas ou filtros ou ainda, por mais um alinhamento de direcção.
Não deixa aliás de ser curioso, que este mesmo sentido mecânico posto na respectiva profissão, seja muitas vezes perceptível na própria argumentação defendida pelo biela, seja aquando da discussão dos fundamentos para acções a desenvolver no âmbito Clube Beretta, seja em outro tipo de assunto de carácter mais geral ou diletante, como aquele que tivemos oportunidade de discutir, na passada segunda-feira, enquanto se removia de um Ford Capri de 1979, a respectiva caixa de velocidades.
Questionava-se o biela – e por arrasto eu mesmo, ainda que apenas pretendesse deixar o meu veículo para a revisão dos 100 000 Km – sobre existirem modelos políticos que, com as respectivas diferenças, melhor se adaptem e melhor potenciem as características próprias de um povo. Das palavras notava-se sobretudo um enorme desencanto com a república e a irritação quando acontecia, era apenas em razão das óbvias dificuldades em fazer soltar o veio de transmissão, ou a embraiagem. De qualquer maneira, sempre o biela dizia: “Caríssimo X., sendo o modelo político republicano a expressão mais conforme àquele fragmento mais numeroso e desordeiro, perfeitamente acéfalo e sanguinolento da Revolução Francesa e nesse sentido, aquele que mais próximo está de uma ideia e expressão verdadeiramente democrática do indivíduo (o povo, ainda que tresloucado e investindo em manadas, é efectivamente o único ente soberano) e sendo esse fragmento de multidões democráticas, oposto àquele outro, mais burguês e exclusivista, mais próprio e próximo da ponderação e do racionalismo iluminista de inspiração liberal (que não democrático, mas régio por essência), essa importação republicana e francesa das multidões, hoje efectiva em Portugal, reduz-nos a um conjunto de princípios comuns, sem dúvida importantes, mas que, sendo hoje partilhados por todo um outro conjunto de países e de repúblicas, nos tornam indistintos (somos, para todos os efeitos, repúblicas) chegando a sobrepor-se à respectiva história e à respectiva cultura.” Por momentos, o biela parou, pegou numa outra chave de bocas e prosseguiu: “Caro X., hoje, para demasiados, é muito mais importante ser-se cidadão e universalista, do que pertencer-se e reduzir-se a uma pátria e a uma história. Hoje, em nome desse suposto “universalismo” iluminista de inspiração democrática e do modelo político que o glorifica, chega-se a pedir desculpa aos outros pela história que tivemos e pela cultura que trazemos. Mas que raio é isto X.?!! A mim, diz-me muito mais a história e a cultura, do que o raio do princípio da separação de poderes!” O biela terminou assim brusco e desencantado a remoção da caixa das velocidades. O Ford Capri de 1979, apesar da sangria, seria seguramente restituído ao esplendor dos seus anos de glória. E arrastando com o pé toda a ferramenta espalhada para um canto, o biela rematou: “Sabes X., por isso me pergunto se não ficaríamos verdadeiramente bem servidos e conformes com a nossa natureza histórica e cultural, se fosse novamente a monarquia e o rei.. Aí, seguramente tudo seria a nossa história, a nossa cultura e respectivo património, e quebraríamos o poder dessa burocracia branca e internacionalista que hoje, esvazia os Estados!”
Eu por mim, imaginei o rei em Fornos, deixando a propriedade do seu carro aos cuidados do biela. O rei em Fornos, passando a Igreja, chegando à garagem num Ford Capri. O rei em Fornos, espectáculo para trabalhadores, agregando multidões... Haveria adereços nas vénias e aparato na gala? Eu, muito singelamente, perguntaria qual a franca opinião da majestade sobre a miúda pendurada a um canto da garagem, que fazia questão em mostrar-se apetitosa e nos dizia que era já fevereiro, o mês do calendário...

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

clube beretta 2000 - os diários

O encontro com o major – parte I

O alfredo da tijuca, quando o apanhamos nos dezassete, resolvera aparecer com uma pistola automática lüger de 1926. Evidentemente que pelos dezassete voltou a permanecer, pois, em caso algum, permitiríamos que chegasse a pôr os pés no escort de 1987. Não pelo escort, mas sim pela pistola. Sempre havíamos afirmado o extremo rigor que poríamos nos pressupostos de integração no Clube Beretta 2000. Um desses mesmos pressupostos passava, naturalmente, pelo respeito à memória e engenho desses armeiros italianos, que em golpes de génio sucessivos, passaram dos mosquetes de carregamento pela boca no século XVI, às maravilhas automáticas que trazíamos na mão e com as quais, julgamos poder fazer justiça. Por isso havíamos definido que jamais alguém tomará parte em actividades definidas pelo Clube Beretta 2000, com pistolas da concorrência. O alfredo da tijuca que grame o frio e que se lixe e arranje uma Beretta genuína...
O razz, também não há forma de se localizar. Havia trazido toda uma série musical que se adequasse às suas projecções cinematográficas, mas quem estava no carro concordou que o nosso propósito, hoje, era bem mais prosaico e muito mais português – talvez cantarolar um fadinho viesse a calhar. Constatou-se, contudo, que nenhum de nós era assim tão apreciador da canção nacional a ponto de propor-se piratear a amália ou o alfredo marceneiro, agregando-os em mp3 num disco prateado para depois ouvi-los no carro. Para isso talvez desse menos trabalho e resultasse bem melhor roubar cassettes de um desses expositores insólitos de fita magnética, que ainda abundam pela tabernas do interior, com o melhor da música nacional. Como ninguém o fez, foi ainda o razz que geriu a radiola e os altifalantes, em função das sugestões cinéfilas que lhe apareciam pela cabeça.
Eram 16 horas e 30 minutos e seguíamos pela Rua da Constituição abaixo já depois dos semáforos com a Avenida de França. O escort tinha sido estacionado um pouco acima. O razz e o biela seguiam agora pelo passeio, eu e o antónio barbeiro paralelamente, pelo alcatrão. O propósito era dar com Valentim Loureiro dentro da sede da Liga, pela qual entramos sem que fossemos questionados nas intenções – é estranho entrar-se assim pelos sítios, de arma em punho, sem que nos perguntem ao que vamos. Como sabem, o que nos movia no essencial, era repor uma lógica e uma fonética aceitável nos lugares comuns de que se faz a modalidade dita futebol. Nada mais sério, nada mais simples.

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o encontro com o major - parte II

Quando, de arma em punho, rompemos pelo seu gabinete, o major estava à secretária...
Por breves instantes todos permanecemos imóveis, gelados, mas na cara do major percebi aquele arrepio que percorre a espinha e que deve ser também comum aos porcos, quando eles se percebem encurralados, adivinhando o desmanche. Por norma, estes compreendem que não havendo fuga possível, o que lhes resta é grunhir e fugir pela lama enquanto alguém os tenta parar, segurando-os pelos presuntos. O major, contudo, surpreendeu-nos. Usando da sempre bem-vinda subtileza saloia e talvez, fazendo-se valer de alguns conhecimentos de táctica militar, num impulso que deve ser característico dos veteranos da guerra, saltou/pinchou procurando abrigo atrás de uma outra secretária e por ali permaneceu. Pensei: os majores devem ser indivíduos de recursos insofismáveis. Não há nada que os paralize, nem quatro pistolas mirando-lhes o focinho. De qualquer forma, o razz entrara já em monólogo: “Sabe senhor major, o senhor não nos conhece, nem saberá igualmente quais as nossas preferências clubísticas, se alguma. Também o propósito que aqui nos trás, nada tem a ver com tais assuntos, nem com demonstrar de uma forma mais veemente a nossa discordância com a nomeação do Senhor Lucílio Baptista para qualqurr modesto jogo da liga, ou com o castigo aplicado ao Macarthy pela cotovelada no Rui Jorge, que diga-se de passagem, é absolutamente ridículo. O nosso propósito aqui é outro e fundamentalmente nobre, relacionando-se directamente com a lógica e a preservação fonética na modalidade que dirige. Sabe senhor major, nós somos de Fornos e como deve imaginar Fornos não é a América...” . Pelos vistos, alguma razoabilidade começava a fazer-se notar nos circuitos cerebrais do razz, mas entretanto eu havia-me dispersado pela montra de troféus que se exibia a um canto do gabinete. Constatei que o Afifense Futebol Clube havia sido segundo classificado no campeonato distrital da II divisão de Viana do Castelo, que a Associação Desportiva de Estacamos havia arrebatado o torneio triangular da Pontinha e que o Eusébio havia doado as caneleiras com que tinha jogado num particular em 1973 entre um misto da selecção nacional e o Alenquer (pelo menos, era isso que se dizia na placa comemorativa, agrafada nas ditas caneleiras). Estava eu imerso nestes vestígios de história desportiva da modalidade enquanto o razz prosseguia matraqueando num monólogo, quando, num instante, somos brutalizados por um cheiro nauseabundo... Atrás da secretária, o homem, o cidadão, o major, o dirigente desportivo havia-se borrado nas calças....

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Clube Beretta 2000 – os diários

Fornos, 18 de Janeiro de 2006.

Saí efectivamente de forma algo ansiosa. O razz havia-me a meio da tarde ligado para dizer que o biela iria apresentar á noite, uma nova proposta de actuação para o Clube Beretta. Havia já algum tempo desde a carnificina dos pais Natal e por isso, foi com extremo agrado, que ouvi a notícia. Aparentemente havia coisas relacionadas com o dirigismo desportivo que tiravam o biela do sério. Á noite, no café tareco, bebendo algumas super bock xl, percebemos porquê. Aquilo que seriamente irritava o biela era dizer-se “...do futebol português...”. Inicialmente o propósito escapou-nos. Futebol português?... O biela tomou fôlego, deu uma valentes goladas na xl e depois continuou: por exemplo, quando se diz “...ah! porque isto do futebol português... “ ou então “... como se não houvessem suspeições no futebol português...” ou quando se imagina alguém a dizer, que, um dia “...revelarei todos os podres e todas as mentiras do futebol português...” e de que “.... Há podridão no futebol português... “ e isto é futebol português e daquilo do futebol português etc.. etc... etc... do futebol português. Ponto. Nesta altura, o biela apresentava-se algo exaltado, mas explanou os seus argumentos.
Primeiro: dizer “...futebol português...” é fatela. E é fatela porque afirma um encadeamento fonético foleiro: ...futebol português, ...futebol português, ...futebol português. Depois de mais algumas repetições interiores a dizer “...futebol português” lembrei-me do sample dos ABBA que a Madonna usa em Hung Up e pensei cantando e ao ritmo da música: futebol português... futebol português...futebol português... Meu Deus! Que foleiro! Só faltava porem-nos a cantar com uns macacões amarelos, futebol português... futebol português...futebol português... Por aí, o biela venceria.
O segundo argumento que apresentou era: porquê? Porquê “...futebol português.”? Acaso o futebol é diferente de outro que se jogue em qualquer outra parte do mundo? Acaso somos os únicos a jogar com os pés enquanto noutros sítios o futebol joga-se com a mão, ou com a pilinha? Há alguma variante exclusiva da modalidade em Portugal (aqui eu pensei.... hmm! Modalidade. Boa!) Acaso em qualquer outro sítio que se conheça não jogam sempre onze contra onze aos pontapés numa bola e nos outros onze, enquanto outros palhaços insultam o árbitro do piorio e de palhaço também, mas sobretudo, se chama de puta à mãe dele e se grita que se lhe vai comer a filha?
Apresentadas desta forma as coisas, para o biela, dizer-se futebol português (lá vêm a madonna...) não faz qualquer espécie de sentido. Futebol é futebol e a sua afirmação como conceito, não depende da sua associação a qualquer tipo nacionalidade, que nada lhe acrescenta. Segundo, “futebol português” é de uma forma vil e grosseira, um encadeamento foneticamente foleiro independentemente das variáveis gramaticais com que possa surgir no português!
Realmente, não precisaríamos de muito mais para voltar a praticar tiro ao alvo... o importante era passar a definir objectivos...

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

clube beretta 2000 - os diários

Fornos, 15 de Janeiro de 2006

Confesso que, nas sucessivas vezes em que lá estive, nunca consegui enquadrar verdadeiramente qual a sequência de entrada na 4ever, em Riomeão. Se são móveis num exíguo corredor aquilo que se ultrapassa primeiro ou se, pelo contrário, depois da entrada, é já na amplitude da pista de dança onde logo procuro fazer-me notar. Por norma, tudo está escuro e são sempre as luzes e o rodopio dos cristais que trago na cabeça e essa falta de discernimento, essa cegueira aveludada, afecta-me a correcta percepção dos lugares.
Nestes dias de prodigioso empenho na república e de claros excessos de candidatos republicanos, para um vulgar trabalhador assalariado de aparência baça como eu próprio, morador em Fornos e logo suburbano por condição (que se limita na sua rotina de existência, a passar ferro e alumínio por um torno mecânico de segunda a sexta-feira) acreditem que nada melhor, nada de mais superior nos pode acontecer do que ficar surdo e atordoado pelas luzes e pelos cristais, numa saída de sábado à noite. Depois dos móveis, ou do corredor ou de uma qualquer amplitude menos percebida, Hung up é a estridência e o bem-estar que nos ressoa e nos faz vibrar o abdómen enquanto, não sei bem por onde e não sabendo bem como, anseio por uma pista de dança aonde possa libertar todo o peso do metal que ainda carrego nos braços. Felizmente, isto está cheio carne de gajas...

(... e eu continuo perdido no corredor ou na pista de dança, ou talvez mesmo me tenha entretanto desorientado no suor e na espuma. Há sempre demasiadas luzes... Sei apenas que, a partir de momento em que saiu de uma esfera de espelhos em Lisboa, deveria ser Madonna a candidata única à república. Aqui na 4ever, toda a gente votaria nela... Suburbanos ao Poder!)
Time goes by so slowly for those who wait ...
No time to hesitate...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

clube beretta 2000 - os diários

Fornos, 13 de Janeiro de 2006.

Serão alguns parágrafos de reflexão filosófico-política, que poderão, para muitos, parecer estranhos. À nossa volta nada existe de sofisticação metafísica, nenhuma militância filosófica ou peregrina nos condiciona no dia-a-dia e não frequentamos corredores e mesas de café por onde caminham e se sentam cabeças bem-pensantes, expressando uma urbanidade insuspeita de gosto e de ideias. Isto é Fornos e pode parecer estranho que nesta existência suburbana, neste eremitério de couves e batatas e edifícios desconexos, exclusivamente marcado pelo esforço do trabalho e alguns excessos de fim-de-semana, se possam ver discutidas, de forma estruturada, questões relativas à organização política, respectivos sistemas e fundamentos.
O razz foi a estrela com quem, todos, de forma mais ou menos conformada, acabamos por concordar. Considerada em reunião alargada a proposta formulada por F. (que conforme dei nota nas páginas anteriores, consistiria na eliminação de personalidade presentemente empenhadas na renovação e futura representação da república) o ponto de partida no Clube Beretta começou por ser a seguinte interrogação: que justiça poderá derivar de uma bala?
Para os condescendentes e filosóficamente rousseaunianos é antes e imediatamente a heresia que de tal interrogação resulta. O Homem – enquanto ser racionalmente determinado e por isso, a todo o tempo capaz da equidade – jamais poderá afirmar a justiça disparando balas.
Foi por isso estimulante constatar que no Clube Beretta 2000, nenhum de nós partilha essa visão condescendente da natureza humana. Afirmamos um princípio antropologicamente pessimista do Homem, de que ele, independentemente de todo o racionalismo, é sempre capaz do bem e do mal e de que essa infinita constatação, é inerente à sua essência. Eis-nos assim em constatação filosoficamente Hobbesiana, enquanto a tia-avó do biela (que, obviamente, ninguém quis beijar!) passava cada vez mais mirradinha e desfigurada, de sarapilheira e sachola às costas. Ora, se o Homem é sempre capaz do mal e se a confrontação com este se revela sistemática, então, consideradas circunstâncias particulares, alguma justiça (senão toda!) poderá ser afirmada pela bala! Assente a base filosófica da discussão, faltava discutir se tais conclusões teriam algum interesse prático no que concerne à república e aos candidatos republicanos e aí, o razz, estabeleceu o raciocínio pelo qual seria oficiosamente determinada a nossa posição: à república, de nada adiantariam seis balas! A conclusão impunha-se na medida em que a referida república fazia temporalmente precipitar todo o sistema político numa disputa partidária, sobre algo que (esse era o entendimento de razz) deveria ser essencialmente agregador. Determinada esta auto-flagelação republicana, entendeu-se escusado um esforço no sentido de levar alguma justiça ao republicanismo decadente, sujeitando o ford escort de 1987 às campanhas eleitorias. Creio que também, nenhum de nós arranjaria a paciência para tanto, ainda para mais, quando aguardo uma sopa de legumes e mão de vaca... agora, à república, só a ira de Deus valerá!