sexta-feira, 10 de março de 2006

clube beretta 2000 - os diários

As conversas com o biela: sobre o indivíduo e o estado

Parte I – a derivação nihilista

Para o biela, circular e viver em Fornos com uma Beretta entalada nos costados era, acima de tudo, uma questão filosófica. Será à primeira vista difícil compreender como é que andar com uma arma (no caso do biela, uma pistola semi-automática Beretta 8000 F Cougar L type P de 9mm) pode ter alguma coisa a ver com uma determinada mundividência, com um determinado posicionamento ontológico sobre as coisas do mundo. Mas isso seria desconfiar do biela! Seria participar de preconceitos relativamente à sua sabedoria e à sabedoria que existe naqueles que nos possam parecer mais humildes. Seria também perspectivar coisas e pessoas, segundo banalizações e estereótipos estafados, desconfiando assim de toda uma bagagem adquirida nos livros e numa vida feita de trabalho árduo. Ora, eu não creio que alguém que vive e trabalha honestamente na sua oficina como mecânico de automóveis, trazendo sempre presa pela cintura uma pistola automática, enquanto simpática e muito diligentemente procede ao alinhamento de direcções, ou faz mudanças de óleo, possa ser reconduzido àquilo que de normal conhecemos das coisas. Não. Algo mais se esconde e o biela estava nos antípodas de toda a superficialidade dos dias, a que se manifesta por empurrões de arrogância e que funciona pela agregação a modelos de ignorância e de hedonismo, modelos de onde está ausente aquele mínimo de cultura e de história, que muito simploriamente assenta na pura sofisticação da imagem que nos limitamos a consumir, e onde assumir qualquer conteúdo ou princípio mais rígido que lhe seja inverso, é proibido. Ignora-se assim, o valor das coisas simples, das sabedorias antigas, o valor da abordagem humilde, ainda que seja muita a cultura e o conhecimento que possamos partilhar.
Por isso (porque, de certo modo, todos no Clube Beretta partilhávamos esta última visão das coisas) se o biela me dizia que trazer uma pistola entalada pela cintura (afivelada pelo cinto), era para ele, uma questão filosófica, eu não poderia deixar de acreditar. Tanto mais, que depois me explicou porquê...
Trazer por sistema a semi-automática não tinha tanto a ver com o assumir de um nihilismo nietzschiano com o qual o biela (ou nós mesmos!) estaríamos comprometidos. Não haveria da nossa parte uma tentativa de tudo reduzir a cinzas, no pressuposto de que existe um profundo engano, uma perversão da verdadeira natureza do homem operada pela predominância e domínio dos valores de tradição judaico-cristã. Não. Nós não havíamos sido corrompidos! É certo, reconhecia o biela, que sendo portador de uma arma, por vezes se tornava difícil resistir a essa derivação nihilista e que às vezes também lhe passava pela cabeça dedicar-se à loucura, metralhando tudo. Mas nada desses pressupostos acabavam por assumir a verdadeira relevância no porquê filosófico da arma. Para o explicar, lembrou-se de convocar um pequeno parágrafo, de inspiração nietzshiana,

“foram os judeus quem, em oposição à equação aristocrática do nascimento nobre, da riqueza, da bravura (bem é igual a aristocrático, igual a riqueza, igual a belo e feliz, igual a amado pelos deuses) ousaram (...) sugerir a equação contrária (...) só os desgraçados são bons; só os pobres, os fracos, os humildes são bons; os que sofrem, os necessitados, (...) são os únicos que são piedosos, os únicos que são abençoados, a salvação é só para eles. Mas vocês (...) os aristocratas, vocês os homens de poder, são para toda a eternidade o mal, o horrível, o avaro o insaciável, o ímpio;”

Muito embora a sabedoria e suas derivações não sejam assunto desconhecido de quem habitualmente o frequenta, a citação, dita num tom algo incisivo, provocou alguma perplexidade no habitual alinhamento do balcão do “Café Tareco” – significativamente atestado, mas que por manifesta infelicidade de metros quadrados, nunca fora grande – tendo eu igualmente notado, que essa mesma perplexidade chegou a ressoar pelos espelhos e alumínios que constituíam o seu singelo elemento decorativo, eles, mais as mesas e cadeira lacadas a verde água onde nos sentávamos. Indiferente, firme, o biela prosseguiu a sua explicação. Se o coitado do Nietzsche, com parágrafos como aquele, acabara por morrer louco, ele, o não menos brilhante biela, estava sobretudo interessado em preservar a respectiva sanidade, vivendo por muitos mais anos como mecânico de automóveis (afastando-se da condição de inimputável!) e por isso rejeitava qualquer entendimento que filosóficamente o pudesse ligar a um super-homem remontado da respectiva loucura, renascido das cinzas do judaísmo e do cristianismo, que posteriormente viesse a restabelecer uma ordem oligárquica entre os homens, cuja inspiração derivaria directamente da antiguidade clássica. Não! O biela perfilhava o Deus monoteísta daquela tradição judia e nada queria ter a ver com a interminável e promíscua sucessão mitológica dos Deuses do Olimpo, cuja própria história confundem, ainda para mais, por gostarem em demasia de se carregar e pôr uns em cima dos outros! Uma vez mais, não! A razão da semi-automática, o fundamento filosófico para a sua permanente presença no quotidiano, estava para o biela umbilicalmente ligada ao liberalismo filosófico-político dos séculos XVII e XVIII, de tradição modernista e pressupostos hobbesianos, nos termos dos quais, o indivíduo, a irrepetibilidade da pessoa humana era e é, a medida única para todas as coisas, o único princípio válido em torno do qual, toda a arquitectura da existência deveria assentar as suas bases. O quotidiano da Beretta era, enfim, a expressão última de um individualismo filosófico feroz que ele procurava desse modo perfilhar, e que no seu entender, era cada vez mais acossado pela opressão do Estado, que pela burocracia e pelo funcionalismo procurava deturpar e distorcer esse contrato ancestralmente estabelecido e no qual o indivíduo era e deveria continuar a ser o seu ente e dominante principal... Hoje, em face da dimensão e do controlo estadualmente exercido sob o mais amplos e diversos domínios da existência, a única coisa a que como indivíduos poderíamos aspirar, era a réstias, a episódios de individualidade, pelas quais o biela estaria disposto a lutar de faca nos dentes.
Por coincidência ou não, mas como pura manifestação desse mesmo individualismo agressivo e senhor de si mesmo, cada vez mais raro, tombara com estrondo no mesmo instante, o tijaquim das malotas. Sabe-se que todo o Homem sempre se movimenta preservando um ângulo recto ao solo, ainda que lhe seja muito difícil manter um rumo certo, ou mesmo tomar uma direcção. Mas o tijaquim, numa demonstração tanto de virtuosismo como de ritual alcoólico, bebera um último copo ao balcão do “Café Tareco” inclinando-se de tal forma para trás que se esquecera dessa aquisição evolutiva. Já estendido, gemeu então ao retardador.... aaiiiii!, mas ninguém lhe ligou nenhuma...

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