sexta-feira, 10 de março de 2006

clube beretta 2000 - os diários

Parte II – do liberalismo filosófico

Pensei no quanto de agressividade de que somos capazes quando nos sentimos acossados. Pensei que nessa gradação, o desespero ou mesmo a demência poderiam ter um importante papel a desempenhar – das razões que nos impõem ou nos trazem a violência, não vale a pena acreditarmos que nelas, ou depois delas, haverá espaço para um instante de equilíbrio, para o ajuizado. Por norma, é sempre mais violência aquilo que sobra, até que nos comece também a faltar o tempo para a repetir em acréscimos, dando-lhe uma eterna continuidade.
Olhei para fora das duas pequenas janelas do Café Tareco. Com o olhar houve alguma pausa nos ecos e nos sons que lhe conheço. Afinal, era o dia que também se ia encerrando, e Fornos haveria hoje de viver esses dias de transtorno e de incómodo. De há uns anos para cá, semeara-se uma ruindade que entretanto brotara e crescera pelos seus carreiros e pelas ruas. Da identidade que lhe fôramos conhecendo – da gente trabalhando sementeiras no campo, do São Miguel que encerrava todos os anos as suas esforçadas tarefas, dos dias determinados pela som e a presença da luz, do gado, dos cães e de todos os outros animais que nos circundavam os dias – a única coisa que ainda se fazia presente, eram as couves do quintal que se coziam abundantemente na sopa, ou o tutano da mão de vaca que por norma se lhe juntava, ou então, o espectáculo de ver correr galinhas depois de lhes cortar o pescoço (o povo deixara de se juntar e matar porcos, em nome de regulamentos assépticos e veterinários e às vezes, entretinha-se a recordar histórias enquanto as galinhas decepadas esbarravam nas paredes). Fornos era hoje acossada pela impossibilidade urbana, pelo mito de que o progresso surge por desatar a construir paredes ao alto, rebocando-as por fora de azulejo para casas de banho. Fora esse o progresso especulativo dos ignorantes que viraram empresários, que viraram falidos. Fora esse o progresso deixado a meio e que fazia conviver actualmente sementeiras e batatas com edifícios desconexos, implantados aos repelões, e toda uma outra gente que não se respeita e não se conhece de parte nenhuma. É daqui a derivação feroz, o impulso individual e agressivo quando nos impõem caminhos que não escolhemos, quando abandonam os projectos impossíveis. O drama é que em Fornos já ninguém conhece o que quer que seja ...
O tijaquim das malotas lá se deixou ficar estendido e não gemeu mais. Por vezes movimentava ligeiramente o braço direito, fazendo-o correr ao longo do corpo, coçando-se aqui e ali mas deixando-se quedo, a ver se se recompunha. Quem fosse do Café Tareco sabia que bem o poderiam ali fechar, encerrando o estabelecimento, que seria o tijaquim das malotas quem encontrariam na manhã seguinte pendurado ao balcão, já à espera que lhe fosse servido o primeiro bagaço. No Café Tareco, toda a gente condescendia nessa sua vontade de morrer por desgosto (um homem é livre de morrer quando e porque razões quiser!) e por algumas vezes nos havíamos conluiado para que esse funcionalismo piedoso da Segurança Social não fizesse abortar esse seu propósito suicida, enviando-o uma qualquer instituição de solidariedade social, por sempre achar que para o Homem, há esperança. A única esperança do tijaquim das malotas era que o deixassem morrer rápido por congestão do bagaço e não seria o Estado que o iria impedir de fazer da sua vida, o que muito bem entendesse. As suas contas seriam assunto com Deus e não com burocratas bem intencionados apenas com a própria sobrevivência económica. Por isso o tijaquim das malotas contava com a nossa colaboração caridosa para com essa sua última expressão de vontade.
Não por ironia, tudo reforçava o enquadramento que vinha discutindo com o biela e que fundamentava o porquê filosófico das armas, sobretudo como uma afirmação agressiva de individualidade.
No fundo, não havia nada aonde não metesse o Estado o bedelho! Nem o simples desejo de morrer impedia que a diligência do seu funcionalismo nos batesse á porta! O Estado sabia o teu nome, a tua idade, se eras casado, solteiro ou divorciado, se compravas na farmácia espermicida, ou se tinhas com gosto oferecido qualquer coisa de mais valor à tua mulher! O Estado sabia se eras gordo ou se eras magro, se tinhas problemas de epilepsia, quantas propriedades tinhas ou quanto achavas por bem investir na Rua de Ceuta, no Porto. E viria seguramente o dia em que, por razões de saúde pública ou de medicina preventiva, te obrigariam a frequentar rastreios sanitários, de tempos a tempos, onde te enfiam sondas em todos os buracos que trazes, delicadamente apalpando-te os tomates, enquanto te pedem para abrir a boca e para dizer aahhhh!... É por isso que a arma é a tua única solução! O Estado, sobretudo aquele de inspiração social-democrata, tornou-se num pardieiro de zelo e de regulamentos ridículos e inconcebíveis, que apenas servem para justificar os salários que tu próprio pagas! O contrato de inspiração hobbesiana celebrado com a individualidade de cada um, para a necessária preservação dessa individualidade e irrepetibilidade de cada um, foi subvertido pelo Estado e nele, as diferentes dimensões inerentes a cada pessoa humana, é secundarizada por imposições de modelos que o próprio Estado define. Ele estrangula-nos e trata-nos como verdadeiros estúpidos em seu próprio benefício, quase incapazes do próprio raciocínio. E a quem assim não alinha, a quem acredita que algures foi subvertida a relação indivíduo/estado em prejuízo do domínio sobre ti mesmo, do teu destino, não resta senão o poder da arma como afirmação última dessa individualidade que se vai perdendo, assumindo a sua verdadeira natureza humana, do bem e do mal. Neste último aspecto, a arma constituía até um mecanismo de responsabilização quanto ao teu próprio destino, porque te dava o poder da escolha, o poder de o definires e de afirmares a tua existência pelo bem, ou pelo mal que entendas praticar. Com uma arma na mão, não haveria mediadores: eras tu e a consciência da tua história, a consciência daquilo em que acreditas.
É aliás essa opção e vontade estadual de aspirar ao condicionamento da natureza humana, dela obliterarando toda a ruindade e toda a violência (fazendo-se de Deus Pai Todo – Porderoso, criador do universo) em que assenta e motiva o zelo do funcionalismo que o serve, nesse inconcebível propósito. O Homem é objecto de todas as violências e é por isso que nós, no Clube Beretta, pretendemos ser esse contraponto, o outro lado das coisas, contra o consenso e o mimetismo a que nos seus dias, todos os outros se dedicam. O Clube Beretta e a arma que o mesmo pressupõe, não é senão a afirmação dessa mundividência a que todos deixaram de prestar atenção. Se Fornos assim o pudesse também traria Berettas na mão e uma faca nos dentes e o tijaquim das malotas, senão estivesse já morto para si mesmo, enquanto vivia para todos os outros, também seguramente se nos juntaria...

Sem comentários: