Parte II – do liberalismo filosófico
Pensei no quanto de agressividade de que somos capazes quando nos sentimos acossados. Pensei que nessa gradação, o desespero ou mesmo a demência poderiam ter um importante papel a desempenhar – das razões que nos impõem ou nos trazem a violência, não vale a pena acreditarmos que nelas, ou depois delas, haverá espaço para um instante de equilíbrio, para o ajuizado. Por norma, é sempre mais violência aquilo que sobra, até que nos comece também a faltar o tempo para a repetir em acréscimos, dando-lhe uma eterna continuidade.
Olhei para fora das duas pequenas janelas do Café Tareco. Com o olhar houve alguma pausa nos ecos e nos sons que lhe conheço. Afinal, era o dia que também se ia encerrando, e Fornos haveria hoje de viver esses dias de transtorno e de incómodo. De há uns anos para cá, semeara-se uma ruindade que entretanto brotara e crescera pelos seus carreiros e pelas ruas. Da identidade que lhe fôramos conhecendo – da gente trabalhando sementeiras no campo, do São Miguel que encerrava todos os anos as suas esforçadas tarefas, dos dias determinados pela som e a presença da luz, do gado, dos cães e de todos os outros animais que nos circundavam os dias – a única coisa que ainda se fazia presente, eram as couves do quintal que se coziam abundantemente na sopa, ou o tutano da mão de vaca que por norma se lhe juntava, ou então, o espectáculo de ver correr galinhas depois de lhes cortar o pescoço (o povo deixara de se juntar e matar porcos, em nome de regulamentos assépticos e veterinários e às vezes, entretinha-se a recordar histórias enquanto as galinhas decepadas esbarravam nas paredes). Fornos era hoje acossada pela impossibilidade urbana, pelo mito de que o progresso surge por desatar a construir paredes ao alto, rebocando-as por fora de azulejo para casas de banho. Fora esse o progresso especulativo dos ignorantes que viraram empresários, que viraram falidos. Fora esse o progresso deixado a meio e que fazia conviver actualmente sementeiras e batatas com edifícios desconexos, implantados aos repelões, e toda uma outra gente que não se respeita e não se conhece de parte nenhuma. É daqui a derivação feroz, o impulso individual e agressivo quando nos impõem caminhos que não escolhemos, quando abandonam os projectos impossíveis. O drama é que em Fornos já ninguém conhece o que quer que seja ...
O tijaquim das malotas lá se deixou ficar estendido e não gemeu mais. Por vezes movimentava ligeiramente o braço direito, fazendo-o correr ao longo do corpo, coçando-se aqui e ali mas deixando-se quedo, a ver se se recompunha. Quem fosse do Café Tareco sabia que bem o poderiam ali fechar, encerrando o estabelecimento, que seria o tijaquim das malotas quem encontrariam na manhã seguinte pendurado ao balcão, já à espera que lhe fosse servido o primeiro bagaço. No Café Tareco, toda a gente condescendia nessa sua vontade de morrer por desgosto (um homem é livre de morrer quando e porque razões quiser!) e por algumas vezes nos havíamos conluiado para que esse funcionalismo piedoso da Segurança Social não fizesse abortar esse seu propósito suicida, enviando-o uma qualquer instituição de solidariedade social, por sempre achar que para o Homem, há esperança. A única esperança do tijaquim das malotas era que o deixassem morrer rápido por congestão do bagaço e não seria o Estado que o iria impedir de fazer da sua vida, o que muito bem entendesse. As suas contas seriam assunto com Deus e não com burocratas bem intencionados apenas com a própria sobrevivência económica. Por isso o tijaquim das malotas contava com a nossa colaboração caridosa para com essa sua última expressão de vontade.
Não por ironia, tudo reforçava o enquadramento que vinha discutindo com o biela e que fundamentava o porquê filosófico das armas, sobretudo como uma afirmação agressiva de individualidade.
No fundo, não havia nada aonde não metesse o Estado o bedelho! Nem o simples desejo de morrer impedia que a diligência do seu funcionalismo nos batesse á porta! O Estado sabia o teu nome, a tua idade, se eras casado, solteiro ou divorciado, se compravas na farmácia espermicida, ou se tinhas com gosto oferecido qualquer coisa de mais valor à tua mulher! O Estado sabia se eras gordo ou se eras magro, se tinhas problemas de epilepsia, quantas propriedades tinhas ou quanto achavas por bem investir na Rua de Ceuta, no Porto. E viria seguramente o dia em que, por razões de saúde pública ou de medicina preventiva, te obrigariam a frequentar rastreios sanitários, de tempos a tempos, onde te enfiam sondas em todos os buracos que trazes, delicadamente apalpando-te os tomates, enquanto te pedem para abrir a boca e para dizer aahhhh!... É por isso que a arma é a tua única solução! O Estado, sobretudo aquele de inspiração social-democrata, tornou-se num pardieiro de zelo e de regulamentos ridículos e inconcebíveis, que apenas servem para justificar os salários que tu próprio pagas! O contrato de inspiração hobbesiana celebrado com a individualidade de cada um, para a necessária preservação dessa individualidade e irrepetibilidade de cada um, foi subvertido pelo Estado e nele, as diferentes dimensões inerentes a cada pessoa humana, é secundarizada por imposições de modelos que o próprio Estado define. Ele estrangula-nos e trata-nos como verdadeiros estúpidos em seu próprio benefício, quase incapazes do próprio raciocínio. E a quem assim não alinha, a quem acredita que algures foi subvertida a relação indivíduo/estado em prejuízo do domínio sobre ti mesmo, do teu destino, não resta senão o poder da arma como afirmação última dessa individualidade que se vai perdendo, assumindo a sua verdadeira natureza humana, do bem e do mal. Neste último aspecto, a arma constituía até um mecanismo de responsabilização quanto ao teu próprio destino, porque te dava o poder da escolha, o poder de o definires e de afirmares a tua existência pelo bem, ou pelo mal que entendas praticar. Com uma arma na mão, não haveria mediadores: eras tu e a consciência da tua história, a consciência daquilo em que acreditas.
É aliás essa opção e vontade estadual de aspirar ao condicionamento da natureza humana, dela obliterarando toda a ruindade e toda a violência (fazendo-se de Deus Pai Todo – Porderoso, criador do universo) em que assenta e motiva o zelo do funcionalismo que o serve, nesse inconcebível propósito. O Homem é objecto de todas as violências e é por isso que nós, no Clube Beretta, pretendemos ser esse contraponto, o outro lado das coisas, contra o consenso e o mimetismo a que nos seus dias, todos os outros se dedicam. O Clube Beretta e a arma que o mesmo pressupõe, não é senão a afirmação dessa mundividência a que todos deixaram de prestar atenção. Se Fornos assim o pudesse também traria Berettas na mão e uma faca nos dentes e o tijaquim das malotas, senão estivesse já morto para si mesmo, enquanto vivia para todos os outros, também seguramente se nos juntaria...
Pensei no quanto de agressividade de que somos capazes quando nos sentimos acossados. Pensei que nessa gradação, o desespero ou mesmo a demência poderiam ter um importante papel a desempenhar – das razões que nos impõem ou nos trazem a violência, não vale a pena acreditarmos que nelas, ou depois delas, haverá espaço para um instante de equilíbrio, para o ajuizado. Por norma, é sempre mais violência aquilo que sobra, até que nos comece também a faltar o tempo para a repetir em acréscimos, dando-lhe uma eterna continuidade.
Olhei para fora das duas pequenas janelas do Café Tareco. Com o olhar houve alguma pausa nos ecos e nos sons que lhe conheço. Afinal, era o dia que também se ia encerrando, e Fornos haveria hoje de viver esses dias de transtorno e de incómodo. De há uns anos para cá, semeara-se uma ruindade que entretanto brotara e crescera pelos seus carreiros e pelas ruas. Da identidade que lhe fôramos conhecendo – da gente trabalhando sementeiras no campo, do São Miguel que encerrava todos os anos as suas esforçadas tarefas, dos dias determinados pela som e a presença da luz, do gado, dos cães e de todos os outros animais que nos circundavam os dias – a única coisa que ainda se fazia presente, eram as couves do quintal que se coziam abundantemente na sopa, ou o tutano da mão de vaca que por norma se lhe juntava, ou então, o espectáculo de ver correr galinhas depois de lhes cortar o pescoço (o povo deixara de se juntar e matar porcos, em nome de regulamentos assépticos e veterinários e às vezes, entretinha-se a recordar histórias enquanto as galinhas decepadas esbarravam nas paredes). Fornos era hoje acossada pela impossibilidade urbana, pelo mito de que o progresso surge por desatar a construir paredes ao alto, rebocando-as por fora de azulejo para casas de banho. Fora esse o progresso especulativo dos ignorantes que viraram empresários, que viraram falidos. Fora esse o progresso deixado a meio e que fazia conviver actualmente sementeiras e batatas com edifícios desconexos, implantados aos repelões, e toda uma outra gente que não se respeita e não se conhece de parte nenhuma. É daqui a derivação feroz, o impulso individual e agressivo quando nos impõem caminhos que não escolhemos, quando abandonam os projectos impossíveis. O drama é que em Fornos já ninguém conhece o que quer que seja ...
O tijaquim das malotas lá se deixou ficar estendido e não gemeu mais. Por vezes movimentava ligeiramente o braço direito, fazendo-o correr ao longo do corpo, coçando-se aqui e ali mas deixando-se quedo, a ver se se recompunha. Quem fosse do Café Tareco sabia que bem o poderiam ali fechar, encerrando o estabelecimento, que seria o tijaquim das malotas quem encontrariam na manhã seguinte pendurado ao balcão, já à espera que lhe fosse servido o primeiro bagaço. No Café Tareco, toda a gente condescendia nessa sua vontade de morrer por desgosto (um homem é livre de morrer quando e porque razões quiser!) e por algumas vezes nos havíamos conluiado para que esse funcionalismo piedoso da Segurança Social não fizesse abortar esse seu propósito suicida, enviando-o uma qualquer instituição de solidariedade social, por sempre achar que para o Homem, há esperança. A única esperança do tijaquim das malotas era que o deixassem morrer rápido por congestão do bagaço e não seria o Estado que o iria impedir de fazer da sua vida, o que muito bem entendesse. As suas contas seriam assunto com Deus e não com burocratas bem intencionados apenas com a própria sobrevivência económica. Por isso o tijaquim das malotas contava com a nossa colaboração caridosa para com essa sua última expressão de vontade.
Não por ironia, tudo reforçava o enquadramento que vinha discutindo com o biela e que fundamentava o porquê filosófico das armas, sobretudo como uma afirmação agressiva de individualidade.
No fundo, não havia nada aonde não metesse o Estado o bedelho! Nem o simples desejo de morrer impedia que a diligência do seu funcionalismo nos batesse á porta! O Estado sabia o teu nome, a tua idade, se eras casado, solteiro ou divorciado, se compravas na farmácia espermicida, ou se tinhas com gosto oferecido qualquer coisa de mais valor à tua mulher! O Estado sabia se eras gordo ou se eras magro, se tinhas problemas de epilepsia, quantas propriedades tinhas ou quanto achavas por bem investir na Rua de Ceuta, no Porto. E viria seguramente o dia em que, por razões de saúde pública ou de medicina preventiva, te obrigariam a frequentar rastreios sanitários, de tempos a tempos, onde te enfiam sondas em todos os buracos que trazes, delicadamente apalpando-te os tomates, enquanto te pedem para abrir a boca e para dizer aahhhh!... É por isso que a arma é a tua única solução! O Estado, sobretudo aquele de inspiração social-democrata, tornou-se num pardieiro de zelo e de regulamentos ridículos e inconcebíveis, que apenas servem para justificar os salários que tu próprio pagas! O contrato de inspiração hobbesiana celebrado com a individualidade de cada um, para a necessária preservação dessa individualidade e irrepetibilidade de cada um, foi subvertido pelo Estado e nele, as diferentes dimensões inerentes a cada pessoa humana, é secundarizada por imposições de modelos que o próprio Estado define. Ele estrangula-nos e trata-nos como verdadeiros estúpidos em seu próprio benefício, quase incapazes do próprio raciocínio. E a quem assim não alinha, a quem acredita que algures foi subvertida a relação indivíduo/estado em prejuízo do domínio sobre ti mesmo, do teu destino, não resta senão o poder da arma como afirmação última dessa individualidade que se vai perdendo, assumindo a sua verdadeira natureza humana, do bem e do mal. Neste último aspecto, a arma constituía até um mecanismo de responsabilização quanto ao teu próprio destino, porque te dava o poder da escolha, o poder de o definires e de afirmares a tua existência pelo bem, ou pelo mal que entendas praticar. Com uma arma na mão, não haveria mediadores: eras tu e a consciência da tua história, a consciência daquilo em que acreditas.
É aliás essa opção e vontade estadual de aspirar ao condicionamento da natureza humana, dela obliterarando toda a ruindade e toda a violência (fazendo-se de Deus Pai Todo – Porderoso, criador do universo) em que assenta e motiva o zelo do funcionalismo que o serve, nesse inconcebível propósito. O Homem é objecto de todas as violências e é por isso que nós, no Clube Beretta, pretendemos ser esse contraponto, o outro lado das coisas, contra o consenso e o mimetismo a que nos seus dias, todos os outros se dedicam. O Clube Beretta e a arma que o mesmo pressupõe, não é senão a afirmação dessa mundividência a que todos deixaram de prestar atenção. Se Fornos assim o pudesse também traria Berettas na mão e uma faca nos dentes e o tijaquim das malotas, senão estivesse já morto para si mesmo, enquanto vivia para todos os outros, também seguramente se nos juntaria...
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