Parte II: afiando as facas
Não fizéramos qualquer menção ao presenciado quando nos cumprimentamos. Havia já algum tempo desde a última vez que me demorara à conversa no talho de fornos com o joca talhante, e ele entusiasmou-se com facto de estar ali com algum tempo para a conversa.
Não fizéramos qualquer menção ao presenciado quando nos cumprimentamos. Havia já algum tempo desde a última vez que me demorara à conversa no talho de fornos com o joca talhante, e ele entusiasmou-se com facto de estar ali com algum tempo para a conversa.
O joca é tipo que engana. Ele não se circunscreve à ciência do corte ou à matança do porco e a usar para o efeito, os aventais cobertos de sangue e uma luva de malha metalizada. Como de resto imaginava, depois de afiadas as facas e algumas trivialidades, estabelecera-se um novo patamar de conversa: “sabes X., no outro dia passava por cedofeita e reparei em algo lapidar inscrito nas paredes. “O cidadão – essa coisa pública – mata o Homem”. Caro X., isso não mais me saiu da cabeça pelo resto do percurso pela rua do Breyner e pelo tempo que passei espreitando as galerias da rua da Boa Nova e de Miguel Bombarda. Ainda agora tal me lateja da mesma forma na cabeça. O racionalismo filosófico e a sua expressão concreta, humana e temporalmente situada, a que designaram por cidadão (nesse brilhantismo filosófico dos séculos XVII e XVIII, ainda tratado como criatura de Deus!) foi posteriormente objecto de um primeiro abastardamento mecanicista de inspiração Comtiana, cujo programa sociológico se permitia considerar como possível, reduzir esse mesmo indivíduo – agora, simples cidadão e jamais criatura de Deus! – a bases experimentáveis e sobretudo condicionáveis!”.
O joca talhante recolheu duas pesadas facas de lâmina larga, afiou-as uma na outra e desatou a seccionar partes de frango, usando de enorme veemência física nos golpes. Depois prosseguiu: “Essa fé monstruosa na ciência e nos seus métodos, que constituiu a primeira ofensiva sobre a verdadeira natureza do Homem, foi depois agravada pelo disseminar de um delírio colectivista, económica e filosoficamente assente nos ensinamentos de marx e engels, e que fez estabelecer toda uma nova dimensão de possibilidades, que dificilmente se compreende: o cidadão e o Homem que nele restava, individual e sociologicamente condicionado pela metodologia Comtiana, poderia depois a um nível diverso, ser motivado e dirigido como massa acrítica e indistinta, ao estabelecimento de uma sociedade de cariz colectivo e desprovida de classes, manobrada assim no sentido de para sempre eliminar privilégios. O Homem - a criatura de Deus –havia sido transformado pelo racionalismo em cidadão, e depois em ser alheio a qualquer religião que não a do Estado e seus fins, pela ciência, fosse ela de inspiração sociológica ou socialista.”
O trabalho algo ensurdecedor de desconjuntar na tábua, unidades antes nomeadas como frangos, havia sido de igual modo finalizado pelo joca e tal deve ter inspirado o seu remate final: “X., do Homem, do indivíduo, das possibilidades de expressão e de vida que ele encerra como ser vivo e como criatura de Deus, já nada resta. Qualquer um de nós que não se resigne a este enquadramento previamente escolhido, que nos é imposto em todas as dimensões pelo Estado, não faz outra coisa senão esbarrar em paredes. O propósito já não é nosso, ele apenas será permitido se prosseguir ou se se enquadrar naquilo que são os interesses do Estado e seus fins. Se calhar, num futuro, nem na morte poderemos ser verdadeiramente livres: é que eles já andam atrás do meu e do teu património genético!”
Para mim o joca talhante estava contratado. Nada mais seria necessário, o lugar preenchido. Comprar uma pistola Beretta era o esclarecimento e o pormenor que faltava.
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