É das tais coisas que me lança uma tremenda confusão…
Não importa agora discutir as razões que farão futuramente o discurso daqueles favoráveis á despenalização do aborto, nem as razões de que se valerão os que se manifestarão contra. O país insiste em valorar esta mesma questão como a de uma necessidade imperiosa para o nosso progresso colectivo, ainda que tal progresso signifique uma vez mais e apenas, andar a correr atrás do que os outros já fizeram (e ainda que esses outros estejam já na fase de questionar as soluções que agora tanto ansiamos alcançar, exemplo: Espanha despenalizou a prática de aborto com fundamento no desfavorecimento social da mãe e estes são agora cerca de 375 000 por ano, num país que economicamente, tem hoje grande dificuldade em justificar tal número. Tal paradoxo não deixa de ser objecto de preocupação por parte das entidades espanholas).
Mas o que importa agora é discutir o pormenor e as contradições políticas que nesta matéria resultam para a social-democracia portuguesa.
Esta sempre defendeu com enorme intransigência e com uma certa dose de radicalismo, o chamado Serviço Nacional de Saúde. Afinal tal constituiria e constitui uma das tão propaladas “conquistas de Abril” obliterando-se através de tal mistificação, o dado histórico de terem sido Salazar e Marcelo Caetano quem primeiro retirou do domínio das misericórdias a prestação de cuidados de saúde e investiu numa cobertura nacional de rede de hospitais e posteriormente, (com Marcelo Caetano) na institucionalização de cuidados primários, com os chamados Postos Médicos ou postos de saúde – este apego á verdade, poderá na mente de muitos significar que eu saúdo Salazar e bajulo o Marcelo Caetano e que por isso não passo de um porco fascista, mas isso é o país que vive preso aos mitos revolucionários e ao qual eu não dou importância nenhuma.
Tudo isto a propósito das contradições social-democratas portuguesas: descubro pois, que perante a intransigência sempre demonstrada por essa mesma social-democracia na privatização do sistema nacional de saúde e pelo estabelecimento de um sistema misto (privado/público) essa mesma social-democracia, sempre intransigente, avança com a possibilidade de, caso vença o referendo sobre o aborto, financiar directamente a mãe que pretende abortar, pagando-lhe todas as despesas que decorram do ambulatório a realizar junto de clínicas privadas, estabelecendo desse mesmo modo e conscientemente, todo um sistema de prestação de cuidados de saúde sempre defendido pela Direita e por uma visão liberal do Estado (este não seria o responsável pelas estruturas e modelo através dos quais a prestação de cuidados de saúde se efectuaria, antes financiaria directamente o cidadão – através de um cheque-saúde – para que este obtivesse junto de instituições privadas os cuidados de que necessitaria, nomeadamente aqueles mais desfavorecidos).
Ou seja, quando todos os demais cidadãos são sujeitos no sacrossanto sistema nacional de saúde, às demoras intermináveis e às listas de espera, á sua ineficiência e desperdício para realizar intervenções de carácter fundamental para o seu bem-estar, o mesmo Estado que lhes impõe tamanhas dificuldades e riscos – em razão da sua própria intransigência ideológica – permite que para efeitos abortivos, se estabeleça todo um diferente sistema de funcionamento e financiamento, em benefício de algo altamente questionável nos propósitos, revelando desse mesmo modo e simultâneamente, a total falência do sistema com que todos os outros têm de gramar, ainda que seja para salvar a sua própria vida.
Por favor, expliquem-me… Afinal, o que é que a social-democracia quer?
P.S.: não deixa de ser extraordinário que a propósito do referendo sobre o aborto, os partidos políticos que sempre puseram um certo grau de radicalismo na defesa do sistema de saúde público (como em todos os restantes sistemas públicos) permaneçam calados, num silêncio conivente, perante aquilo que constituí um atestado de total incompetência e falência do património colectivo que defendem e em que se empenharam e empenharam o país.
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