terça-feira, 16 de maio de 2006

[.............] esse é o meu nome


Não me recordo do nome. É muçulmano de religião – como são muitos dos guineenses – e sendo o seu nome, expressão desse propósito confessional, não é fácil que ele nos fique com exactidão na memória. De qualquer forma, não ter nome (porque não me lembro dele) serve os propósitos que aqui se procuram relatar. Tem sido de resto esse o esforço prosseguido pelo Estado Português nestes últimos 30 anos: não saber nomes, não nomear determinados indivíduos. De preferência, esquece-los. Por isso o homem de meia-idade que era filmado pelas câmaras da rtp-n no meio do mato e do capim guineense, esmagando cajus com as ferramentas toscas da sobrevivência, não tinha nenhuma vontade de falar. Assim, e para os presentes efeitos, ele continuará sem nome. Diremos que simplesmente se chama [.............].
[.............] tem uma medalha da cruz de guerra de primeira classe atribuída pelo Estado Português, por actos e feitos de bravura praticados em campanha.
[.............] integrou o corpo de comandos durante três comissões, na luta contra o PAIGC. Por isso, ele jurou fidelidade ao exército português e logo, à sua Pátria.
Hoje, [.............] não sabe se verdadeiramente era essa a sua pátria, não sabe se fez bem em sentir-se português.
Era português no mato e no capim, bebendo água podre. Era português disposto ao último sacrifício, sobrevivendo entretanto. Era português como os outros pretos e os outros brancos que na Guiné esperavam viver um presente para lá da guerra. Eram todos iguais no medo, todos iguais na vontade de resistir. Eram todos iguais porque a morte não quer saber dessas coisas que o homem inventa: na sua hora, ela não escolhe a cor da pele, não quer saber se é o preto ou é o branco. É um deles, aquele que tem de ser.
Depois da guerra [.............] apresentou-se nos quartéis da Guiné independente como militar que era, para reintegração no respectivo exército, porque assim ficara acordado entre o agora Estado Guineense e o Estado Português. Os militares de origem guineense que haviam combatido pelo exército Português como portugueses que eram, poderiam manter a respectiva nacionalidade, ainda que integrados no exército guineense. [.............] era português como muitos outros que se apresentaram. Quando o PAIGC chegou, disse-lhes que teriam 15 minutos para desaparecer senão seriam ali fuzilados, por traição. [.............] conseguir fugir. Outros caíram logo ali. Apanhado, [.............] viveu como um animal fechado num armazém com cerca de 500 outros companheiros durante 1 ano. Não havia latrinas, não havia nada. Alguns sufocavam e morriam. Outros eram sumariamente fuzilados sem julgamento. Havia fuzilamentos todas as semanas. Eram poucos de cada vez porque aqueles que ficavam a aguardar essa sorte, não tinham forças para abrir muitas valas onde depois se enterrariam os companheiros que eram mortos. [.............] mostra para as câmaras a terra revolvida onde o esquecimentotambém se enterrou .
Quando chegou o seu dia, a sua vez de ser também fuzilado, [.............] saltou da carrinha que o transportava e conseguiu fugir para o mato de mãos algemadas. Ali passou 2 anos até que um dia regressou e não o aborreceram mais. [.............] achava, tinha a esperança de que ainda poderia continuar a ser português.
Mas Portugal esqueceu-se.
Agora, havia coisas mais importantes a alcançar: havia o internacionalismo proletário, havia um caminho de liberdade e de socialismo e guerra fora uma coisa dos fascistas, não poderia nunca ter sido uma coisa da pátria ou dos portugueses, não fora uma coisa de homens e do seu sacrifício, fora uma coisa de suínos sem dignidade. Os verdadeiros portugueses, esses nem lá estiveram, estavam com o 25 de Abril....
[.............] já nem sabe onde pára a Cruz de Guerra. Tem apenas os papéis que atestam a sua condecoração e ele, provavelmente, nem quer bem lembrar-se do dia em que oficiais a espetavam no camuflado.
[.............] é um homem profundamente triste, esmagando cajus.
Há mais de um ano que espera a emissão de um visto para pisar pela primeira vez terra portuguesa. Não bastaram 30 anos da pátria a olhar para o lado, perguntando-lhe pelo nome... Não. [.............] teria que esperar por mais um papel. E disto eu sabendo (reportagem rtp – n domingo, dia 14 de Maio) também fico com muito pouca a vontade para que digam o meu nome, em português: [.............].

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