terça-feira, 23 de maio de 2006

new york city most wanted

fosse o mundo o pátio de cimento por onde pudessemos correr.
solis, alejandro polinar romero.
1 – 800 – 262 – 4221.

Fosse o mundo o pátio de cimento por onde pudéssemos correr, decompondo, prolongando as horas, arquitectando nas cabeças as impossíveis brincadeiras, e sempre seria ele a babilónia dos Homens, o sítio onde praticassem eles todos os seus excessos, correndo, cortando, golpeando indiscriminadamente. Nada há de que não sejam nesse pátio, os Homens capazes, nada que os impeça da crueldade. Nada que não os traga embrulhados em porcaria, em violência estúpida, impondo os vazios irremediáveis, condenando à morte por toda uma existência e por simples exercício ou grosseria, os que ficam, os que choram imaginando sombras e reflexos, os gestos perdidos de quem, pela mesma constante e rigorosa violência, morreu assassinado.
E assim pelos olhos e pelo coração, subsiste sempre esse medo de que sendo afinal Primavera, estando fresca a relva e iluminado o campo, nos possam inadvertidamente matar também.
A essa violência que germina indistinta pela terra e que tem por sua semente a natureza humana, não a pretendemos ver nas sucessivas modalidades com que se reinventa, com que nos brutaliza, acontecendo. Não a pretendemos ver despida como se fora uma volúpia a que depois possamos desejar (serão os Homens, eternamente, filhos dos canibais?).
Melhor fora que não houvesse essa persistência, essa condenação. Melhor fora que aos Homens os pudéssemos de alguma maneira matar também, por uma última e derradeira vez, sobrevivendo-lhes apenas nós, os que não podem ser ainda nomeados. Pouparíamos na dor e na vingança, sufocada que estava toda a violência de que são eles capazes, a violência que mutilara quem antes saíra de sua casa, e trouxera o pão e a carne e tinha quem o aguardasse na sala, arranjando as flores e os jarros.
E contudo, não havendo Homens arrastando consigo a roldana da crueldade, não havendo o sangue em excesso no cruzamento do mundo, o que ficava depois da redenção, do auxílio? Não os havendo – aos Homens – impregnados de indescritíveis malefícios, do grotesco, a quem depois perdoaríamos? A quem resgataria do ressentimento e da dor, o tempo? A quem, num gesto descoberto, estenderíamos a mão?
Há outras palavras cuja frequência tanto gostamos, cujo valor fazemos questão em habitar, mas cuja substância de significado depende de uma existência e de todo o aleatório que ela encerra. Palavras que nos transformam, porque antes delas nos fora dada a possibilidade de persistir em impassibilidade. Palavras que transformando, evocam o que antes desconhecíamos, a dádiva, o benefício, o dom, a sincera gratidão.
Não houvessem Homens e triunfaria o automatismo do bem, a mecânica da perfeição. Não houvesse toda violência e frequentaríamos um condomínio de utopia, aonde não nos fora dada a possibilidade de optar. Essa necessidade, esse requisito de salvação, cessara de existir. Escolheríamos só as gradações de que uma só cor é capaz e com ela preencheríamos todos os dias em matizes, em surdez. Não nos fora dada a exigência de preferir crescer para um lado, ou ser derrubado para o outro.
E foi isso que agora lixou a solis, alejandro polinar romero de seu nome, o nova iorquino procurado, com número de cadastro: 1 – 800 – 262 – 4221. Foi isso que lixou a solis, o facto de a violência ter uma permanente morada nos Homens, um apartado disponível no sangue. E fora a circunstância da escolha que o derrubara. Agora só os outros homens poderão fazê-lo crescer.
A existência não é permeável às simplificações de motivos de que são feitas todas as utopias e nela subsiste uma exigência que sempre se reconhece: a do bem e a do mal, a virtude ou o defeito. O dom e o malefício. A forma pela qual se antevê o dano e a condição para a respectiva cura.
Pelos dias, pelos nossos dias, haverá sempre a violência e depois, eventualmente, o perdão...

em escuta: "sold" de Joe Henry - Tiny Voices, 2005

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