Sei que a maioria das pessoas enquadra-se na categoria dos que “gostam ou não se importam” de viajar de avião.
Pois eu não pertenço a essa pandilha. Eu odeio viajar de avião. Tenho aquele temor reverencial por tudo que é antinatural e muito rusticamente digo: se Deus quisesse que voássemos, viveríamos em ninhos. Nutro a mesma repulsa pelas viagens de barco – da última vez que me vi ao espelho não notei nenhuma barbatana nas costas, da mesma forma que nunca se me sumiu a base ou o blush para as guelras.
Por isso, acredito piamente que a lei da gravidade é um statement divino a não vexar. Há-que andar com os pézinhos no chão. Não se deve zombar das leis da natureza e ponto final.
A vida impõe-me, no entanto, prazeres irrenunciáveis. Amor, chocolate amargo, viagens. Não há volta a dar-lhe. O terceiro dos vícios anunciados colide frontalmente com o pavor de voar. E porque hoje o que conta não é a distância mas o tempo que se leva a chegar, surge, incontornável, a blasfémia do Avião.
Por isso às vezes, em nome do vício, lá tenho que fazer o check-in e embarcar. Lá tenho que pagar os olhos da cara por umas horas da mais subida e aflitiva angústia. Nem posso botar abaixo um par de JackDaniel’s sem gelo para tentar minorar a histeria porque não gosto de whisky; também não me dou grande coisa com Valium.
E começa o calvário: desde logo, as náuseas provocadas por aqueles cheiros aeronáuticos, que resultam de um mix de vomitados mal limpos, de comida entornada para debaixo dos bancos onde os aspiradores não chegam e de perfumes baratos da malta que viaja em turística (que agora se chama economy). Depois, tudo o resto me ensandece: a colocação das valises de mão e demais tarecada nos porta bagagens (processo que se assemelha sempre a um scketch do Roan Atkinson), a música dum qualquer Phill Collins a perturbar o ambiente, as “aeromoças” com ar de enfado, as pessoas que nunca mais se sentam porque estão excitadíssimas por “ir andar de avião”... Esta trapalhada vai-se desenrolando enquanto se ouve o captain a testar a aeronave fazendo uns barulhinhos quaisquer tipo aparafusadora sem fios Black&Decker. Será que enquanto isso estará a pensar: “Vamo lá ver se a rebimbela da grampôla não encrava como no voo de ontem pra Paris...”
Jesus!
De seguida, quando se ouve nos altifalantes “portas em disarm” (que diabo será isso?) inevitavelmente chega a hora da descolagem... Palavra de honra, é do que mais mexe comigo, ao ponto de ficar com os olhos mareados. Primeiro, é aquela aceleração incrível em que temos a nítida sensação de que “se este fulano quiser parar, já não dá...” à qual se segue o esmagamento dos pulmões e estômago contra os intestinos – este é o sinal de que as rodinhas do bicho deixaram o solo... A subida é, normalmente, acompanhada de umas inclinações e uns abanões por demais desconfortáveis acompanhados do acentuar do ranger dos plásticos que compõe os interiores da aeronave (de certeza que são do mais inflamável que há).
Após a exaustão provocada por estas sensações físicas, banhada em suor frio, vem o pior: é altura de perder o controlo dos meus pensamentos: tudo me passa pela cabeça, desde que relacionado com acidentes abomináveis. Tenho tanto tempo disto (voei pela primeira vez quando tinha 6 anos de idade) e tal jeito para piorar a minha situação que no meu acervo psicótico de catástrofes aéreas uma explosão é a ocorrência mais soft.
Durante os meus últimos voos tenho me debatido com a análise e ensaio mental de acidentes que ocorram sem a componente explosão e/ou despressurização. Tenho desprezado estas nuances porque a primeira resolve tudo instantaneamente e a segunda resulta para a população viajante a perda de consciência, de modo que em nenhum dos casos ocorrerá a roda viva do desespero-agonia-sofrimento. Assim, enquanto uns ouvem música ou passam os olhos pela revista da companhia aérea para matar o tempo, imagino como serão vividos os largos minutos de queda livre do aparelho numa viagem de longo curso (em que são atingidas altitudes da ordem dos 45.000 pés, cerca de 14 quilómetros). Nesses delirium tremens a cabine está sempre pressurizada e iluminada, de modo a que as pessoas possam ser testemunhas do horror que se deve apoderar da cara das outras. Isto fora os gritos e o vomitado...
Não deve ser pêra doce. A plena consciência do que se está a passar e a inevitabilidade da desgraça deve compor um quadro particularmente dantesco.
Acreditem: passo horas nisto. Pode vir a comida, o carrinho do duty free on board, pode passar o Brad Pitt vestidinho de “aeromôço” que não adianta: a psicose está sempre lá... Não tenho cura.
Entretanto começamos a descida e os meus tímpanos vão dando conta disso. Os pulmões e o estômago que na descolagem haviam esmagado os intestinos vão, finalmente, sofrer vingança. De lágrimas nos olhos e unhas bem cravadas nos braços do assento (que inevitavelmente conquisto ao passageiro do lado depois de lhe rosnar se for necessário) acabo por sentir o baque do monstro na pista. É altura de a populaça bater palmas e divertir-se a ver os flaps nas asas enquanto eu, secretamente, carrego com o pé direito num pedal de travão imaginário debaixo do assento do passageiro da frente. É que me parece sempre que o captain não vai conseguir fazer a besta parar sem um peão na pista...
Para os interessados em agudizar o seu pavor de voar ou em dar umas valentes gargalhadas com as psicoses alheias, recomendo uma visita a www.planecrashinfo.com, um site sério onde poderão, por exemplo, ouvir ficheiros MP3 com comunicações rádio dos últimos momentos anteriores aos desastres ou ficar a conhecer o elenco de sinais e ruídos que possam significar que algo deve estar a correr mal no vosso voo.
Boa Viagem!
Pois eu não pertenço a essa pandilha. Eu odeio viajar de avião. Tenho aquele temor reverencial por tudo que é antinatural e muito rusticamente digo: se Deus quisesse que voássemos, viveríamos em ninhos. Nutro a mesma repulsa pelas viagens de barco – da última vez que me vi ao espelho não notei nenhuma barbatana nas costas, da mesma forma que nunca se me sumiu a base ou o blush para as guelras.
Por isso, acredito piamente que a lei da gravidade é um statement divino a não vexar. Há-que andar com os pézinhos no chão. Não se deve zombar das leis da natureza e ponto final.
A vida impõe-me, no entanto, prazeres irrenunciáveis. Amor, chocolate amargo, viagens. Não há volta a dar-lhe. O terceiro dos vícios anunciados colide frontalmente com o pavor de voar. E porque hoje o que conta não é a distância mas o tempo que se leva a chegar, surge, incontornável, a blasfémia do Avião.
Por isso às vezes, em nome do vício, lá tenho que fazer o check-in e embarcar. Lá tenho que pagar os olhos da cara por umas horas da mais subida e aflitiva angústia. Nem posso botar abaixo um par de JackDaniel’s sem gelo para tentar minorar a histeria porque não gosto de whisky; também não me dou grande coisa com Valium.
E começa o calvário: desde logo, as náuseas provocadas por aqueles cheiros aeronáuticos, que resultam de um mix de vomitados mal limpos, de comida entornada para debaixo dos bancos onde os aspiradores não chegam e de perfumes baratos da malta que viaja em turística (que agora se chama economy). Depois, tudo o resto me ensandece: a colocação das valises de mão e demais tarecada nos porta bagagens (processo que se assemelha sempre a um scketch do Roan Atkinson), a música dum qualquer Phill Collins a perturbar o ambiente, as “aeromoças” com ar de enfado, as pessoas que nunca mais se sentam porque estão excitadíssimas por “ir andar de avião”... Esta trapalhada vai-se desenrolando enquanto se ouve o captain a testar a aeronave fazendo uns barulhinhos quaisquer tipo aparafusadora sem fios Black&Decker. Será que enquanto isso estará a pensar: “Vamo lá ver se a rebimbela da grampôla não encrava como no voo de ontem pra Paris...”
Jesus!
De seguida, quando se ouve nos altifalantes “portas em disarm” (que diabo será isso?) inevitavelmente chega a hora da descolagem... Palavra de honra, é do que mais mexe comigo, ao ponto de ficar com os olhos mareados. Primeiro, é aquela aceleração incrível em que temos a nítida sensação de que “se este fulano quiser parar, já não dá...” à qual se segue o esmagamento dos pulmões e estômago contra os intestinos – este é o sinal de que as rodinhas do bicho deixaram o solo... A subida é, normalmente, acompanhada de umas inclinações e uns abanões por demais desconfortáveis acompanhados do acentuar do ranger dos plásticos que compõe os interiores da aeronave (de certeza que são do mais inflamável que há).
Após a exaustão provocada por estas sensações físicas, banhada em suor frio, vem o pior: é altura de perder o controlo dos meus pensamentos: tudo me passa pela cabeça, desde que relacionado com acidentes abomináveis. Tenho tanto tempo disto (voei pela primeira vez quando tinha 6 anos de idade) e tal jeito para piorar a minha situação que no meu acervo psicótico de catástrofes aéreas uma explosão é a ocorrência mais soft.
Durante os meus últimos voos tenho me debatido com a análise e ensaio mental de acidentes que ocorram sem a componente explosão e/ou despressurização. Tenho desprezado estas nuances porque a primeira resolve tudo instantaneamente e a segunda resulta para a população viajante a perda de consciência, de modo que em nenhum dos casos ocorrerá a roda viva do desespero-agonia-sofrimento. Assim, enquanto uns ouvem música ou passam os olhos pela revista da companhia aérea para matar o tempo, imagino como serão vividos os largos minutos de queda livre do aparelho numa viagem de longo curso (em que são atingidas altitudes da ordem dos 45.000 pés, cerca de 14 quilómetros). Nesses delirium tremens a cabine está sempre pressurizada e iluminada, de modo a que as pessoas possam ser testemunhas do horror que se deve apoderar da cara das outras. Isto fora os gritos e o vomitado...
Não deve ser pêra doce. A plena consciência do que se está a passar e a inevitabilidade da desgraça deve compor um quadro particularmente dantesco.
Acreditem: passo horas nisto. Pode vir a comida, o carrinho do duty free on board, pode passar o Brad Pitt vestidinho de “aeromôço” que não adianta: a psicose está sempre lá... Não tenho cura.
Entretanto começamos a descida e os meus tímpanos vão dando conta disso. Os pulmões e o estômago que na descolagem haviam esmagado os intestinos vão, finalmente, sofrer vingança. De lágrimas nos olhos e unhas bem cravadas nos braços do assento (que inevitavelmente conquisto ao passageiro do lado depois de lhe rosnar se for necessário) acabo por sentir o baque do monstro na pista. É altura de a populaça bater palmas e divertir-se a ver os flaps nas asas enquanto eu, secretamente, carrego com o pé direito num pedal de travão imaginário debaixo do assento do passageiro da frente. É que me parece sempre que o captain não vai conseguir fazer a besta parar sem um peão na pista...
Para os interessados em agudizar o seu pavor de voar ou em dar umas valentes gargalhadas com as psicoses alheias, recomendo uma visita a www.planecrashinfo.com, um site sério onde poderão, por exemplo, ouvir ficheiros MP3 com comunicações rádio dos últimos momentos anteriores aos desastres ou ficar a conhecer o elenco de sinais e ruídos que possam significar que algo deve estar a correr mal no vosso voo.
Boa Viagem!
7 comentários:
Gostei.
Seja MUITO bem-vinda.
Caro asp: Espero ser merecedora do lugar que me reservaram neste bate-papo feirense. standing in the shoulders of giants...
Cara naifa,
"... um mix de vomitados mal limpos e comida entornada?". Seja muito bem vinda...
Mais uma valiosa aquisição, que, tenho a certeza, será uma mais valia para este espaço.
O inicio é prometedor.
Muito bem vinda.
Olá Naifa,
Muito bom!
Não tive coragem de ver o link, fica para uma próxima...
Seja bem-vinda
Não há coisa melhor do que uma viagem de avião. Por vezes, adormeço na descolagem. Noutras, mais longas, aproveito para ler um livro.
O seu post já confirma a aposta. Muito bem-vinda!
Corada de sincera modéstia, agradeço a todos as calorosas boas vindas.
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