quinta-feira, 17 de novembro de 2005

atlanta, georgia, usa

a partir de atlanta em n.º 4 pelos Stone Temple Pilots.
para a.

O desconforto corporal despertou-me.
Zeloso das condições necessárias aos despertares optimistas, o sono aborrecera-se com aquela luminescência que entretanto se assanhara pelo quarto, perturbando o crescer amordaçado das suas sombras: um reflexo circunspecto na moldura das memórias, o crepúsculo subindo o vinco desconforme das roupas, o silêncio fundo e desenhado dos móveis, antes que tal quietude, exposta, manifesta, sucumbisse por completo por volta das oito e um quarto sobre o inevitável frenesim citadino. Fora na exacta expectativa dessa normalidade cronológica, que me havia deitado, exausto, sete horas antes.
Quando o meu corpo se sacudiu naquele aborrecimento incómodo, acordando-me – e para muitos, incluindo eu mesmo, isso nunca acontece no exacto momento em que abrimos os olhos – a luz transpirava ofegante das paredes. Efectivamente, algo diverso acontecia no amanhecer do quarto .... Eram sete horas e uma quantidade imprecisa de minutos mais e na manhã persistia ainda pura, a fresca e inocente dureza dos frutos – aquela que a gosto se arranca com os dentes – a que contudo correspondia uma luminosidade difícil, uma incandescência vigorosa, própria já do meio do dia e que a fisiologia do meu corpo, num estremecer, em absoluto rejeitara.
Em Atlanta, cidade de uns quantos milhões, que se estende e se multiplica visível pelo interior dos espelhos, pusera-se uma manhã temporalmente diversa, desencontrada, sem que coisa alguma se agitasse pelas ruas... A metrópole extensa, quase infinita, acontecia suspensa de si mesma, banhada de luz.
Assentei-me nos pés, aproximando-me da claridade intensa junto à janela do quarto e marquei no vidro, a palma da mão. Do meu trigésimo quinto andar, no extremo sul do Georgia Institute of Technology, onde convergiam a Spring Street e o segmento nascente da North Avenue, percebia bem a esquadria apertada das ruas e os quarteirões a norte do Centennial Olympic Park, que partem da Alexander Street, tendo por limite no seu estremo nascente o Hardy Ivy Park e a Peachtree Street.. É por ali que se arremessam ao início do dia, executivos e quadros técnicos da "corporate america", saídos da ligação alcatroada ao subúrbio, às vivendas afogadas em folha caduca e erigidas em lugares bem mais pacíficos e chilreantes. É sempre por aí que se semeia e alastra a efervescência dedicada dos seus dias, que posterior e inexoravelmente, alavanca toda a cidade.
Hoje, porém, a estas horas e por aquelas paragens, em tudo penetrava a ausência e a paralisia. Nada nem ninguém constrangia outrem, ninguém dificultava ou obstruía. As ruas permaneciam ruas, sublinhadas na sua fisionomia rectilínea pelo bordejamento fresco dos plátanos, nuas das coisas e de pessoas, nelas alvoraçando apenas os pássaros, résteas pulsantes de uma natureza já de si exígua, em voos tão imprecisos quanto estúpidos, para entretenimento solitário da Primavera.
E fora talvez acreditando no meu próprio espanto, nesse crescer incrédulo de se tornar suspenso o magma de que depende o nome cidade – ou simplesmente porque era ainda mais intenso o crescer da luz – que melódicamente recordei palavras de Scott Weilland escrevendo “Atlanta”,

“She lives by the wall,
and waits at the door,
She walks in the sun to me “.

Perguntei-me se partilhando amantes, enganando gordurosos maridos, espancadas as mulheres ou futilmente maquilhando-se de jóias, toda a carne e todo o metal - sobre o qual se ergue a circunstância contemporânea dita Atlanta - se havia nessa manhã prostrado e comovido, fulminada de uma atroz pequenez, na esperança que um bem-dito milagre surgisse daquele inaguardado ímpeto de luz, expiando-nos das mentiras que nos trazem tão pesada esta breve existência.
Dera-se a cidade conta, da frágil contingência do aglomerado que nela existe? Dera-se ela conta do mal e do bem, da força e da doença, do fogo, da água, dos velhos e dos novos, dos perfeitos e mal feitos. Constatara numa súbita atenção, a profunda sabedoria de uns e a repugnante ignorância de todos os outros? Dera-se conta da ambição e da cobiça, do choro, do riso, da dor e júblilo ou do despojamento, que não somos já capazes de suportar?
Dera-se enfim conta, por entre o demasiado lixo e a pouca virtude, daquela trémula justaposição de almas, que convergindo no ínfimo de seus corações, jurava no medo e na fúria um amor eterno, quando tudo o que acima delas avança é agressivo e pontiagudo?
A minha mão ficara marcada onde antes observava uma natureza morta. Esperei que da moldura do silêncio surgisse, no pormenor, um arrependimento. Esperei... mas a espera era a esperança descrente em si mesma. Ao longe adensava-se por fim, o retomar um tanto ou quanto tardio da normalidade, a voragem irreversível de todas as coisas que nos prendem e nos tornam, pela maior parte do tempo, entidades invisíveis a nós mesmos.
Os pássaros, assustados, fugiam.
Melhor era que no banho me visse livre desta difícil persistência do sonho.
Em Atlanta, já nada existe por quem valha a pena o interesse de um gesto, um quadrado puro no coração, pois nada se angustia pela ausência e a pela interminável duração do dia. Há quem se queira ou se ame? Há quem simplesmente espere e lhe cause dor, o insuportável largar da mão?
Esfreguei pelo corpo a higiene perfumada da barra de sabão, a espuma da barba no contorno do rosto, apaziguei a ardência da gilette com o bálsamo hidratante e reparador, vesti-me de Armani e um pouco mais lentamente do que aquilo que costuma ser normal, saí ....
Que nos fulmine a luz e se anuncie aos que amando, ainda persistem, que em breve, todos estarão ameaçados de extinção.

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