sexta-feira, 25 de novembro de 2005

grand canyon, arizona


.... esse amor que ora com violência se rasga


Evoco a partilha que nos trouxe por anos agregados e tudo ponho em perspectiva.
Esse amor que ora com violência se rasga, o amor que tu e eu não soubemos trazer e perpetuar entre as nossas mãos, terá ele sido ofertado por quem nos precedeu, por quem sobre infinitas gerações o soube reconhecer como substância fundamental da existência e como tal, profundamente amá-lo e estimá-lo?

(Eis aqui o Amor, eis a entrega e a mão que acaricia, eterna, os teus cabelos. Eis um olhar reconhecido pela dádiva, a quem ciência alguma conseguirá estabelecer a idade. Eis a substância do mundo que agrega todas as diferenças possíveis, a quem homem ou mulher não tratarão com sobranceria, apenas aceitarão o seu momento na mais infinita humildade. Eis assim o Amor, estendido, perpétuo. Ei-lo, infinitésima partícula, ele que sobe agora a vossa carruagem.)

Não sei a razão que me trouxe aqui, a esta cicatriz na terra por onde divago, Yavapai Point no Grand Canyon, Arizona. A incansável turbulência do vento nestas paragens faz levantar o pó e dispersa a vivacidade laranja da terra. Durante a viagem, atravessando o deserto, pelos sítios de ninguém, trouxe sempre a lembrança de que no nosso quarto subsiste o frio que nele deixaste e que no chão estão ainda revoltas todas as fotografias, a cor das nossas horas felizes e os seus sorrisos, que agora, muito simplesmente, pretendo queimar.
A dor é imensa, ela esmaga-me em permanência o coração e muitos são os quilómetros que entre nós, agora, se entrepõem. Chicago e Arizona, demasiados quilómetros, contrastantes geografias. Mas ainda que a distância não fosse esta, intransponível, e fosse a minha pele aquilo que adivinhava a tua presença, éramos já uma alma sem remédio a quem a fúria que nos esgota, que nos irracionaliza, não permitira o bálsamo da palavra perdão e a vontade sincera por um recomeço. Por isso perdemos todos caminhos possíveis entre nós. Trazemos o punho fechado, sem pontos cardeais. São antes as paredes e infinitas fronteiras que a irreflexão fez surgir e daqui, deixamos de perceber a nossa estrada, o campo aberto que éramos e a quem nem a certeza da nossa morte cerceava horizontes. Nós, tu e eu, seríamos para sempre e perpetuaríamos essa dádiva do verdadeiro princípio, que nos chegou inexplicável em Chicago, numa tarde de Verão.

(Olá! Por acaso não sabes dizer-me por onde fica Northen Star Moll, creio que será perto do Washington Boulevard? Não, não ... desculpa, mas não faço a mais pequena ideia. Aliás... gostaria imenso de poder ajudar-te... Creio saber mais ou menos onde fica e indicar-te o Washington Boulevard, mas o Northen Star Moll não conheço, não sei onde é. Pois... vê se me entendes... era imperioso que me soubesses explicar...)

Agora só a escuridão das caixas em que nos fechamos, pressiona, dilacera e eu não quero perder tão cedo o que posso ainda ter pela frente. A ti não. Serás a ferida profunda aonde outrora cego me estatelei, o acidente de percurso que não soube evitar. Mas a fisionomia do amor, a terra laranja com árvores de fruto que se nos impunha de trazer-te a meu lado, não a reconheço já no teu rosto. Nele não se sobrepõem nem se revelam as características da geografia incondicional, a feição da persistência e do compromisso de quem se ama, que continua irredutível às mais magníficas palavras. Do amor sabemos, conhecemos, a filigrana de presença sempre invisível mas eterna, o quarto e a casa que se partilha e na qual queremos, no final de tudo, morrer, para juntos começar uma outra vez numa outra casa, num outro quarto, num outro tempo de universo.
No fundo, será isso que aqui espero no Grand Canyon, em Yavapai Point, Arizona: dizer-te para sempre não, morrer, desconhecer-te e depois, voltar a respirar, regressando à superfície e ter uma largueza indizível de vistas... Coitados de nós... Sempre tão grandes e tão pequenos.

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