quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Sabrosa, 09 de Novembro de 2005

Manuel António,

É-nos difícil perceber aquilo por que tens passado. Paris é demasiado grande e confusa para caber nas nossas cabeças. Na nossa vila, a pacatez é ainda aquilo que mais sobressai e todos nós, de tantos anos, trazemos pelos ossos um relógio do sol e da rotina. Nele não sobra tempo para acontecimentos extraordinários, só a vulgaridade dos dias. Por isso, os homens quando se encostam ao balcão do Alfredo Loureiro, dali saem sempre vidrados do álcool, a mãe nada vê senão as novelas, as minhas filhas vão-se esforçando pelas boas notas em Vila Real e eu e a Adelaide, arranjando tempo para continuarmos a tratar da terra, sempre que a fábrica nos vai dispensando mais cedo (havias de gostar de ver Manuel, como crescido está o feijão, alinhado a todo o comprido do campo da figueira de baixo, junto à ribeira, estacado como o pai o fazia). Manuel, eu tenho orgulho nestas pequenas coisas que nos trazem os dias (e por vezes eles são tão insignificantes) tenho orgulho nas minhas filhas e na família que soube criar . Tenho orgulho nisso, como tenho um enorme orgulho em ser teu irmão e em juntos partilharmos a carne e a vontade dos nossos pais. E muito embora pouco possa perceber sobre as razões dessa loucura que se incendeia pelos subúrbios parisienses, percebo o quanto desolado e prostrado te deves sentir. Porque, tendo demandado longe e por tanto tempo, tu sempre continuaste filho desta terra e desta gente e isso é daquelas boas coisas para as quais não existe mais remédio. A nossa terra acentua-se no sangue. E porque estás connosco, na memória das coisas simples de uma terra simples, ela nunca deixou de perguntar por ti e pelos teus. É de uma recordação amável e sentida, que se faz a tua presença. E talvez por isso, porque sempre te amamos e sempre te trouxemos no pensamento, te transtorne tanto, essa violência cega e irrestrita, uma violência sem memória que vês nascer naqueles que foste acolhendo em tua casa, tentando com muitos, esta proximidade que nos nasce incontida no coração. O respeito, a bondade, a franqueza, sai-nos pela boca e estende-se nas mãos. E é esse o incêndio de que falas, o incêndio dos anos e da sua vizinhança.
Aí, já não existe terra, nem existe gente.
Por isso sê bem-vindo uma outra vez Manuel António, que eu esperarei por ti junto à ribeira. Não há nada que mais alegre o correr desta vida simples, do que quebrar a ausência de um filho. Estou certo de que a bondade e a esperança, será o nosso único abraço.

Do teu irmão, Joaquim

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